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Revaloração da prova e aplicação da translatividade no recurso especial

Ante as dezenas de milhares de processo tramitando no judiciário brasileiro, no qual 263.407 processos estão sob análise do Superior Tribunal de Justiça (STJ), na tentativa de transformá-lo em uma terceira instância, o tribunal vem se utilizando de uma jurisprudência defensiva.

Isto se traduz na limitação da análise das matérias de ordem pública, bem como na impossibilidade do reexame probatório, no intuito de se manter como uma corte federal de uniformização.

Atualmente, aliado a isso, é inegável que o direito sofre uma superespecialização, de sorte que muito advogados, escritórios e órgãos públicos verticalizam sua atuação nos tribunais superiores e, em muitas das vezes se deparam com processos carregados de vícios processuais e de fundamentação.

Deste modo, os institutos da translatividade recursal e a revaloração probatória se tonaram imprescindíveis para a efetividade da prestação jurisdicional.

Este artigo analisará a função constitucional do Superior Tribunal de Justiça, bem como vinculação material do recurso especial e, no decorrer do desenvolvimento se abordará o efeito devolutivo das matérias de fato, hipóteses de incidência da súmula 7.

Outrossim, a incidência do efeito devolutivo e translativo, posicionamento e divergências doutrinárias e jurisprudências e, por fim, o atual posicionamento do STJ concernentes as matérias de ordem pública pelo STJ.

Portanto, diante da enorme divergência sobre o tema, o presente artigo tem por objetivo demostrar que reexame probatório não se confunde com revaloração, hipótese na qual o STJ poderá dar novo contorno jurídico aos fatos, bem como a possibilidade apreciação de matéria de ordem pública de ofício pela Corte.

Função constitucional do STJ como corte de uniformização

A função uniformizadora se relaciona em estreita margem com o direito e a garantia do princípio da igualdade e legalidade, haja vista que o elemento fulcral é a uniformidade e aplicação das regras e princípios em todo o ordenamento jurídico pátrio.

Desse modo, o recurso especial tem sua fundamentação vinculada as hipóteses do art. 105, III, “a” “b” “c” da Constituição Federal, que deixam bem claro que o valor principal protegido é a isonomia da aplicação da legislação federal, tanto por interpretação contrária, quanto por dissídio pretoriano ou lei local em face da legislação federal.

Vale dizer, o interesse subjetivo das partes é renegado a segundo plano, de maneira que eventual decisão favorável tão somente será consequência lateral da violação objetiva da lei federal segundo as hipóteses constitucionais vinculadas.

Não obstante, o novo Código de Processo Civil ratificou e ampliou a importância do STJ como corte de uniformização por meio dos institutos do Recurso Especial Repetitivo e do Incidente de Assunção de Competência com previsão normativa, de forma respectiva, nos artigos 947 e 1.036 do CPC.

Deste modo, observa-se que cada vez mais o legislador busca reforçar que a função da corte não deve servir como uma instancia revisora, devendo tão somente proteger o direito de forma objetiva.

Ou seja, evitar a violação ao direito federal consoante à interpretação feita pela jurisprudência do STJ em consubstanciação com o entendimento doutrinário.

Todavia, mesmo que se evite a apreciação dos fatos e provas do caso em concreto, ante o exercício natural da subsunção normativa em conjunto com aplicação do princípio devolutividade, ainda que limitada, há casos em que a Corte deverá dar novo sentido jurídico ao fato incontroverso recorrido e apreciar de ofício matéria de ordem pública sob pena de reflexamente violar justamente a legislação federal a qual se busca proteger e uniformizar.

Efeito devolutivo em profundidade e possibilidade de revaloração das provas sobre os fatos incontroverssos constantes no acórdão recorrido

Há dois aspectos para analisar a matéria de direito, o ontológico e o foco problemático. O primeiro seria uma questão meramente jurídica, de maneira que não haveria discussão alguma sobre os fatos, retendo a atenção do julgador para as regras do direito.

O exemplo mais didático é o caso de uma decisão que define a paternidade na qual a controvérsia seria o estabelecimento do marco temporal dos alimentos: se seria da citação ou da sentença.

Outrossim, um exemplo bem contemporâneo objeto de atual controvérsia nos tribunais e no próprio STJ é: a redução equitativa dos honorários sucumbenciais quando não for hipótese de valor irrisório ou inestimável, quando, por exemplo, há extinção do processo de execução pela prescrição intercorrente.

Em outras palavras, no exemplo de acima sequer há menção a qualquer contexto fático de provas e partes, tão somente uma pura análise abstrata da norma, de maneira que tal cenário se equivale à matéria puramente de direito.

Agora, caso haja dúvidas de como os fatos tenham ocorrido no qual se faz necessário uma reanalise profunda do processo, provas e peças processuais, haveria, então, uma questão de fato e, por conseguinte, a impossibilidade de apreciação pela corte que não se presta ao papel de tribunal de cassação.

Por outro lado, a jurisprudência é pacífica no STJ sobre a possibilidade da revaloração do conjunto probatório dos autos no qual não haja dúvida a respeito dos acontecimentos dos fatos, de modo que é possível a Corte conferir novo contorno jurídico.

Importante mencionar que, nesse aspecto, há certa similitude com a questão ontológica meramente de direito, isso porque na revaloração não há obediência de norma que determina o valor que a prova possa ter no caso em concreto.

Isto é, não há reexame dos fatos, por exemplo: como, quem, quando e onde ocorreram? Mas tão somente na subsunção normativa na qual o acórdão se inclinou. Lado outro, frisa-se, o reexame da prova ocorre de um exame minucioso, detalhado e da reavaliação individual das provas constantes nos autos.

Dessa forma, outro elemento extraído dos arestos mais contemporâneos do STJ é que determinada situação fática esteja bem delineada no acórdão combatido e se tratar, conforme dito acima, de fato incontroverso, de modo que para que isso ocorra é imprescindível que os fatos e provas estejam anteriormente pré-questionados e, por consequência, a luz do princípio da devolutividade sejam apreciados pela corte.

Concernente ao prequestionamento, pode-se dizer que se trata sobre efetiva apreciação da questão federal que se pretende discutir no recurso especial pelo tribunal local.

A professora Teresa Arruda Alvim aduz que o princípio da devolutividade – aplicáveis a todos os recursos – significa dizer que com a interposição do recurso se transfere ao órgão responsável o conhecimento parcial ou integral da matéria, havendo, assim, duas formas de abrangência, a extensão e a profundidade.

O efeito extensivo se relaciona com aquilo que parte sucumbente delimita a matéria de sua irresignação recursal podendo ser total ou parcial, ao passo que o efeito de profundidade se relaciona em estreita margem com a possibilidade de apreciação das matérias que estejam conectadas com os fundamentos da do pedido ou da defesa , ou então as matérias passíveis de apreciação de ofício.

Nesse aspecto, observa-se que a revaloração da prova está intrinsicamente ligada com o efeito extensivo daquilo constante no acórdão, não podendo a revaloração probatória extrapolar os limites da matéria factual delimitada sob pena de incidência da Súmula 7.

Esclarecidos estes pontos, passa-se agora a examinar trechos de decisões jurisprudenciais a onde se poderá constatar a incidência dos institutos já mencionados.

Portanto, é possível concluir que o ponto fulcral para revaloração probatória e o afastamento da Súmula 7 se dá quando a matéria esteja devidamente pré-questionada no acórdão e os elementos fático probatórios sejam incontroversos e devidamente delineados na decisão.

De maneira que a Corte não precise reavaliar se os fatos ocorreram desta ou daquela maneira, mas tão somente analisar se moldura jurídica dada ao caso em concreto se adequada com a legislação e entendimento jurisprudencial da própria Corte, mantendo assim sua função na preservação da legislação federal, do princípio da igualdade e isonomia.

Efeito translativo no recurso especial e a cognoscibilidade de ofício da matéria de ordem pública

A translatividade recursal pode ser definida como o efeito é subjacente ao princípio inquisitório, consistindo na possibilidade da instancia recursal emitir pronunciamento sobre questões de ordem pública independentemente do pedido das partes.

O tema sobre a possibilidade da cognoscibilidade de ofício das matérias ordem pública desperta divergências doutrinárias e, outrossim, jurisprudenciais dentro do próprio STJ, de maneira que há atualmente dois posicionamentos concernentes a possibilidade da apreciação da matéria de ordem pública.

O primeiro é de que é necessário que haja pré-questionamento expresso da matéria do acórdão e da matéria de ordem pública para que seja possível a apreciação, sob pena de haver uma espécie de loteria processual na qual o recorrente poderia de forma proposital arguir a matéria de ordem pública ao final para se beneficiar.

Ainda nesse sentido, Ruy Rosado de Aguiar, ex-Ministro do STJ defende esse posicionamento ao afirmar que:

“ (…) a questão de ordem pública, só por isso, não dispensa o requisito do prequestionamento. Isso significaria alterar a substancialmente o sistema recursal desenhado pela constituição transformando o STJ em tribunal de revisão ordinária” .

Ruy Rosado de Aguiar, ex-Ministro do STJ

Nessa mesma linha parece caminhar parte considerável da jurisprudência do STJ, eis que em vários julgados recentes a corte vem aplicando à hipótese a Súmula 211/STJ , no sentido de que o requisito do prequestionamento é exigido inclusive em relação às matérias de ordem pública.

Já o segundo posicionamento, defendido por parte dos doutrinadores, como doutrinadores (Teresa Arruda Alvim, Bruno Dantas Nelson Nery Junior) e, outrossim, por este artigo, é de que a matéria de ordem pública poderá ser apreciada mesmo que não pré-questionada, desde que o recurso seja admitido por alguma das matérias vinculantes, isso porque a matéria de ordem pública pela sua própria natureza já estaria pré-questionada.

Nesse mesmo sentido, se manifesta Teresa Arruda Alvim, que após a admissão do recurso a matéria de ordem pública, conquanto não pré-questionada, poderia ser apreciada em verdade pelo efeito devolutivo na dimensão vertical, não necessariamente pelo efeito translativo.

Ademais disso, a própria legislação por meio do art. 1.034 do Código de Processo Civil em consonância com a súmula 456 do STF , preveem que admitido o recurso excepcional poderá a Corte superior conhecer de quaisquer questões que envolva o capítulo impugnado, reforçando, nesse aspecto, o efeito devolutivo na dimensão vertical mencionada pela professora Teresa Arruda Alvim.

Desse modo, este entendimento ainda é parte do posicionamento jurisprudencial da corte (hoje minoritário, ante prevalência do primeiro) que advoga ser possível a análise de questão de ordem pública independentemente de prequestionamento e mesmo que não alegada pelas partes, desde que a instância especial tenha sido aberta pelo conhecimento do recurso.

Ademais disso, soa que o atual entendimento dominante do STJ parece ser uma jurisprudência defensiva no intuito de delimitar as dezenas de milhares de processos que lá chegam, conquanto tal posicionamento, data máxima vênia, ao meu ver, vá de encontro com a própria função constitucional de uniformização da Corte e aplicação isonômica do direito.

Vale dizer, ao se negar conhecer uma matéria de ordem pública que não foi pré-questionada, inobstante o recebimento do recurso por motivos diversos, ocorre por via reflexa a não aplicação da lei federal e concretização da insegurança jurídica, uma vez que obrigará o jurisdicionado a ajuizar uma ação rescisória e arcar com novos custos processuais que no juízo rescindendo são ainda mais onerosos.

Não obstante, é possível observar à violação do princípio da instrumentalidade das formas , do acesso à justiça e de uma decisão de mérito efetiva, porquanto não há que se falar em efetividade jurisdicional sobre uma decisão que nega apreciação do mérito referente a uma matéria de ordem pública sob o pretexto de que o efeito translativo não é aplicável aos recursos excepcionais.

Surge então uma questão interessante a partir deste raciocínio: poderia uma prova obtida por meio de coação física irresistível que originou uma confissão de dívida – comprovada nos autos – alegada somente na interposição do recurso especial ser desconsiderada sob o pretexto da ausência de pré-questionamento?

Ou mesmo uma dívida oriunda de um contrato que prescreveu há mais de 20 anos – que por eventual falha da defesa não foi alegada – ser desconsiderada pelo STJ, mesmo que o recurso tenha sido conhecido por outros motivos?

Seria possível afirmar que em tais casos hipotéticos a Corte cumpriu seu papel constitucional na aplicação da lei federal? As repostas, conforme explanado acima, estão longe de ter um denominador comum. Entretanto, a conclusão deste artigo vai de encontro como a da parte da doutrina especializada.

Ou seja, desde que o recurso especial tenha sido admitido é possível à análise de matéria de ordem pública ainda que não tenha sido pré-questionada, ante o efeito translativo e devolutivo em profundidade em consubstanciação com art. 1.034 do Código de Processo Civil que está em consonância com a súmula 456 do STF.

Conclusão

Inobstante as dezenas de milhares de recursos que tramitam no STJ que de forma hercúlea lida com excesso de processos, concorda-se que não pode haver o desvirtuamento da sua função constitucional, devendo tão somente corte se limitar à análise da violação objetiva da legislação federal.

Desse modo, como efeito colateral do excesso de judicialização em muitos dos casos os jurisdicionados são vítimas dessas vicissitudes, seja referente à má qualidade das decisões judiciais nas instancias inferiores, seja no defeito por parte da defesa, de maneira que a revaloração probatória e o efeito da translatividade recursal se tornaram institutos essenciais para a efetividade da prestação jurisdicional.

Portanto, pode-se concluir que tanto na revaloração probatória de fatos e provas incontroversos presentes no acórdão, quanto o conhecimento de matéria de ordem pública sem o pré-questionamento no recurso especial conhecido, não há que se falar desvirtuamento da função constitucional da Corte, mas sim o oposto: a aplicação objetiva da lei federal e a uniformidade da aplicação da lei, e, por consequente, fortalecimento institucional do poder judiciário e maior segurança jurídica.

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Autor: Rafael Nogueira Fernandes

Advogado inscrito na OAB/MS sob o nº 21.503, formado pela Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal (UNIDERP) em 2016, Pós-Graduado em Direito do Agronegócio e Pós-Graduando em Direito Processual Civil pelo IDP Online, turma 2020/2021. Atuante no contencioso civil e empresarial.

Este artigo foi publicado por meio do Projeto Editorial de Alunos do IDP.

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