Redator: João Marcos de Carvalho Pedra
O direito exerce de forma precípua o papel fundamental de regulação das relações interpessoais. Em razão da impossibilidade da sociedade se autorregular mediante comportamentos padronizados, ante a pluralidade de ideias e culturas, as leis tomam forma como ferramenta de controle humano.
Dentre as principais formas de controle social é importante destacar a importância do Direito Penal na perspectiva da repressão de atos que atentem contra a vida, o patrimônio, a família e a integridade física.
Ao longo dos últimos anos, muito se discutiu acerca dos métodos para coibir e punir agressores que atentam contra a vida e integridade física de mulheres. Nesse cenário, surge o nome, que nos dias de hoje é popularmente conhecido, que mudou a vida de muitas mulheres e permitiu uma ampliação do debate acerca do tema: Maria da Penha.
Quem foi Maria da Penha e Como Surgiu sua Lei?
Antes do caso Maria da Penha, na década de setenta, um grupos de mulheres foram às ruas com o slogan “quem ama não mata”, de forma que levantou-se de forma enérgica a bandeira contra a violência, sendo este tema incluído na pauta feminista como uma de suas principais reivindicações.
Maria da Penha Maia Fernandes, uma biofarmacêutica cearense, se tornou um símbolo de resistência e luta contra a violência doméstica no Brasil.
Em 1983, após anos de um relacionamento abusivo, ela foi vítima de uma tentativa de assassinato cometida pelo marido, o economista colombiano Marco Antonio Heredia Viveros. Ele atirou em Maria da Penha enquanto ela dormia, deixando-a paraplégica.
Mesmo após essa tentativa, Heredia continuou a agredi-la e, em outra ocasião, tentou eletrocutá-la enquanto ela tomava banho. Esses episódios motivaram Maria da Penha a buscar justiça, e seu caso se tornou um marco na luta contra a impunidade e pela criação de mecanismos de proteção às mulheres.
O processo contra seu agressor, porém, enfrentou uma série de dificuldades. Foram necessárias duas décadas para que ele fosse condenado, e isso só aconteceu após o caso ter sido levado a instâncias internacionais.
Em 1998, Maria da Penha recorreu à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que responsabilizou o Estado brasileiro por negligência e omissão na proteção às mulheres. Em resposta, o Brasil se comprometeu a adotar medidas para enfrentar a violência doméstica e proteger as mulheres vítimas de agressão.
Assim, em 2006, foi sancionada a Lei 11.340, mais conhecida como a Lei Maria da Penha, nomeada em homenagem à sua história de luta. Essa inovação legislativa representou um avanço inédito na legislação brasileira, criando um conjunto de medidas para prevenir e punir a violência doméstica e familiar.
A nova lei estabeleceu formas de proteção à mulher, ampliando as definições de violência para além da física, e incluindo a violência psicológica, sexual, patrimonial e moral, assim como previu a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
Além disso, estabeleceu-se que agressores poderiam ser presos em flagrante, proibindo que o crime fosse tratado como de menor potencial ofensivo, o que permitia penas alternativas no passado.
Após a sua implementação, o Brasil passou a ver um fortalecimento da rede de proteção às mulheres, com a criação de delegacias especializadas, casas de acolhimento e programas de assistência às vítimas.
Dados que merecem destaque
A conscientização sobre a violência doméstica aumentou significativamente, e a lei serviu de base para muitas campanhas de conscientização e denúncias. Dados recentes indicam que a criação da lei teve um impacto positivo no aumento das denúncias de violência, pois encorajou muitas mulheres a buscarem ajuda e apoio.
Em algumas regiões do país, o número de homicídios de mulheres em contexto doméstico diminuiu, embora a violência contra a mulher ainda seja um problema sério no Brasil.
É importante ressaltar que a diminuição dos casos de violência doméstica é, sem dúvidas, primordial. Mas um dado que merece ser destacado é o aumento do número de denúncias. Em 2021, foram reportadas 82.872 denúncias. Em 2022, foram 87.794 denúncias. Já em 2023, foram 114.848 denúncias.
O crescimento do número de denúncias não necessariamente corresponde a um crescimento efetivo da violência doméstica, mas evidencia, em certa medida, um aumento do encorajamento feminino quanto ao ato de denunciar.
A Lei Maria da Penha também inspirou outras legislações, como a tipificação do feminicídio no Código Penal em 2015, que aumentou a pena para homicídios praticados por razões de gênero.
Não obstante, o alcance da Lei Maria da Penha foi ampliado com o passar dos anos. Conforme elenca o Enunciado n. 46 do Fonavid: “A Lei Maria da Penha se aplica às mulheres trans, independentemente de alteração registral no nome e de cirurgia de redesignação sexual”.
Uma série de decisões dos Tribunais Superiores (STJ e STF) tem moldado a aplicação da Lei Maria da Penha, assim como tem buscado coibir diferentes formas de violência de gênero.
Em agosto de 2012, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que se aplica a Lei Maria da Penha entre os ex-namorados desde que exista um vínculo não efêmero entre o homem agressor e a vítima mulher. O acórdão do caso HC 182.411/RS).
Ao mesmo passo, conforme estabelece a Súmula n. 600/STJ, “Para configuração da violência doméstica e familiar prevista no artigo 5º da lei 11.340/2006, lei Maria da Penha, não se exige a coabitação entre autor e vítima”. Ou seja, independe do fato do agressor e da vítima residirem no mesmo local.
Já quanto ao procedimento, o Superior Tribunal de Justiça entende ser necessária “a oitiva da mulher vítima de violência doméstica para a revogação da medida protetiva de urgência anteriormente concedida” (STJ, AgRg no REsp 1775341).
Esta decisão reafirma o compromisso do Poder Judiciário com a verdade dos fatos. Isso porque é importante ressaltar que a vítima em situação de agressão tende a permanecer em um cenário de abuso psicológico e violência, ainda que o agressor esteja preso.
Não obstante, é comum vermos mulheres em situação de violência retirando a denúncia diante do fato de serem dependentes financeiramente de seus maridos, motivo pelo qual a prisão ensejaria um decréscimo patrimonial considerável para o sustento dessa vítima.
Todavia, é necessário coibir que vítimas peçam a revogação de medida protetiva por motivos alheios à efetividade da prestação jurisdicional e da busca à proteção das mulheres.
Por fim, importante destacar precedente do Supremo Tribunal Federal em matéria de combate à violência contra a mulher, no qual firmou-se entendimento no sentido de que “Em julgamentos envolvendo o crime de feminicídio, os jurados NÃO PODEM perdoar e absolver o acusado por clemência” (RHC 229558).
Apesar dos avanços, o Brasil ainda enfrenta desafios para garantir a segurança de todas as mulheres, e a luta de Maria da Penha segue como um lembrete da importância da justiça e da proteção contínua.
A sua história e a criação da lei foram fundamentais para que o tema da violência doméstica se tornasse uma pauta prioritária e para que houvesse mais conscientização e ação no combate a esse tipo de violência.
Referências Bibliográficas
BORGES, Beatriz. Lei Maria da Penha completa 18 anos, mas violência contra a mulher segue crescendo no país. G1. Brasília. Publicado em 07 ago. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/08/07/lei-maria-da-penha-completa-18-anos-mas-violencia-contra-a-mulher-segue-crescendo-no-pais.ghtml. Acesso em: 03 nov. 2024.
CALAZANS, Myllena; CORTES, Iáris. O processo de criação, aprovação e implementação da Lei Maria da Penha. In: Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. 193, 2011
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS/ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Relatório n. 54/01, Caso 12.051, Maria da Penha Maia Fernandes, 4 abr. 2001, Brasil. Disponível em: http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/299_Relat%20n.pdf. Acesso em: 27 set. 2018.
QUEM é Maria da Penha. Instituto Maria da Penha. Disponível em: https://www.institutomariadapenha.org.br/quem-e-maria-da-penha.html. Acesso em 03 out. 2024.