Quando em uma conversa surge a palavra direito, de forma quase instintiva o identificamos diretamente com as leis, como se o direito se resumisse apenas a leis e suas aplicações. Todavia, para o estudioso da área jurídica, as leis são apenas uma expressão do direito, chamada de Direito Legislativo. Além deste, existe o Direito Jurisdicional. Este artigo abordará a dicotomia entre esses dois ramos, explorando suas distinções e interrelações.
Direito Legislativo: Conceito e Contexto Histórico
O Direito Legislativo tem como foco o estudo das normas jurídicas, incluindo aquelas de âmbito nacional, como a Constituição e leis infraconstitucionais, e normas internacionais, como tratados e convenções. O principal interesse do Direito Legislativo reside na forma de criação das normas e na maneira como estas se integram ao sistema jurídico do país.
Desde a Antiguidade, o conceito de Direito Legislativo começou a ser moldado, com exemplos como o Código de Hamurabi, a mais antiga codificação conhecida. No entanto, foi na Roma Antiga que o estudo sistemático desse direito ganhou força, em especial durante a era pré-clássica, caracterizada pelo formalismo jurídico, que exigia que a criação das normas seguisse formas ritualísticas e estabelecidas. Esse cuidado com as formas jurídicas inspirou a filosofia do direito ocidental, embora hoje a falta de formalidade na criação da norma resulte, em regra, na invalidade, e não na inexistência do ato.
Esse campo é explorado principalmente por juristas positivistas, que consideram a lei como a principal fonte do direito. Entre os positivistas, Hart destacou-se ao propor a “norma de reconhecimento” como um paradigma para identificar normas jurídicas válidas e pertencentes ao sistema legal:
“(…). Dizer que determinada norma é válida equivale a reconhecer que esta satisfaz a todos os critérios propostos pela norma de reconhecimento e é, portanto, uma norma do sistema. Na verdade, pode-se simplesmente dizer que a afirmação de que certa norma é válida significa que tal norma satisfaz a todos os critérios oferecidos pela norma de reconhecimento. (…). (HART, 2009, p. 133).”
Direito Jurisdicional: Origem e Filosofia
O Direito Jurisdicional é uma abordagem mais recente, emergindo com a transformação do Estado, impulsionada pela “segunda onda” dos direitos humanos. Esse novo papel impôs ao Estado responsabilidades positivas, como promover a cultura e garantir saúde e educação, o que levou o Poder Judiciário a assumir um papel mais ativo na interpretação e aplicação do direito, muitas vezes preenchendo lacunas legislativas com maior discricionariedade.
Cappelletti observa que, nessas novas áreas de atuação, o Judiciário frequentemente dispõe de maior liberdade criativa, sobretudo quando a legislação é vaga ou imprecisa:
(…). Mas, obviamente, nessas novas áreas abertas à atividade dos juízes haverá, em regra, espaços para mais elevado grau de discricionariedade, e, assim, de criatividade, pela simples razão de que quanto mais vaga a lei e mais imprecisos os elementos do direito, mais amplo se torna também o espaço deixado à discricionariedade das decisões judiciais. (CAPELLETTI, 1999, p. 42).
Já o Direito Jurisdicional é um ramo relativamente novo do direito, o seu objeto de estudo foca na criação de normas jurídicas a partir do exercício da jurisdição pelos juízes singulares e Tribunais. A cunhagem de tal termo se deve aos realistas jurídicos, os quais valorizam o exercício da jurisdição, não apenas na solução de lides, mas na aplicação do direito.
Embora sejam ramos do direito com objetos distintos, ambos têm um ponto em comum. O Direito Legislativo e o Direito Jurisdicional estudam a criação do direito, mas enquanto o primeiro faz a partir da criação de normas pelo Poder Legislativo e, em alguns casos, Poder Executivo, o segundo estuda a criação de obrigações jurídicas originadas das decisões judiciais do Poder Judiciário.
Origem histórica e contexto filosófico do Direito Legislativo
É difícil precisar quando se dá o início do estudo do Direito Legislativo, pois as legislações se iniciam desde a antiguidade, a exemplo do Código de Hamurabi, o qual é a codificação mais antiga que se tem notícia. Todavia, não há registros históricos mais sistemáticos acerca da forma como se foi escrito e sua interpretação, nem como os antigos mesopotâmicos entendiam que aquilo era a lei.
Um estudo mais sistemático do Direito Legislativo já pode ser encontrado na Roma Antiga. Os romanos, desde seus primórdios, eram preocupados com a maneira de se produzir o direito, como narrado por Moreira Alves, o direito romano, principalmente na era pré-clássica, era extremamente formalista, ou seja, para algo produzir efeitos jurídicos, não basta a intenção, é importante que a pessoa o faça conforme é ordenado, em observância as formas corretas, ritualísticas.
Essa observação das formas para criação do direito foi incorporada à filosofia jurídica ocidente, todavia, diferente do Direito Romano pré-clássico, a não observância da forma de produção não gera, em regra, a inexistência do ato, mas a sua invalidade. Tal diferenciação, além de aprofundar o estudo jurídico, permite também uma flexibilidade na criação do direito, o que se limita ao direito privado cível. Já nas demais áreas, a flexibilidade é discutível.
Eis o principal campo de atuação do Direito Legislativo, o estudo das formas de criação das normas abstratas, as quais chamamos de lei. Os principais estudiosos desse campo são os positivistas, os quais ao descreverem o fenômeno social do direito, elegeram a lei como a principal fonte do direito e se preocuparam em descrevê-la e a como determinar a sua forma de criação.
Um destes positivistas é Hart, o qual enuncia a norma de reconhecimento como o paradigma para considerar determinado enunciado como sendo uma norma jurídica e incluída no sistema legal, ou não, vejamos:
(…). Dizer que determinada norma é válida equivale a reconhecer que esta satisfaz a todos os critérios propostos pela norma de reconhecimento e é, portanto, uma norma do sistema. Na verdade, pode-se simplesmente dizer que a afirmação de que certa norma é válida significa que tal norma satisfaz a todos os critérios oferecidos pela norma de reconhecimento. (…). (HART, 2009, p. 133).
O Direito Jurisdicional concentra-se no estudo das limitações e na legitimação democrática do poder criativo do juiz. Seu objetivo é avaliar o impacto das decisões judiciais além do caso concreto, incluindo a criação de normas abstratas que possam ser aplicadas de forma ampla.
Diferenças e pontos de intersecção do Direito Legislativo e do Direito Jurisdicional
Pela própria análise do texto é possível verificar que há diversas diferenças entre estes ramos da ciência jurídica. A começar pelo objeto de estudo, enquanto o Direito Legislativo está focado na atividade legislativa desenvolvida pelo Poder Legislativo e Executivo, o Direito Jurisdicional se preocupa na criação do direito a partir da atividade jurisdicional desenvolvida pelo Poder Judiciário.
As preocupações desses ramos também diferem. O Direito Legislativo adota uma abordagem formalista, analisando a produção de normas quanto à sua conformidade com as regras constitucionais. O Direito Jurisdicional, por sua vez, possui um viés mais político, focando-se nos limites da criação do direito pelo Judiciário e na sua legitimação democrática.
Apesar das diferenças, estes ramos do estudo jurídico possuem pontos de intersecção. A atividade criativa do juiz é respaldada por normas criadas pelo Poder Legislativo, como é o caso do art. 4° da LINDB. Inclusive, o ápice da criação jurisdicional, no Brasil, é concedido por uma norma editada por meio do Poder Legislativo, o Mandado de Injunção, Lei 13.300/2016.
Naturalmente o assunto trabalhado ao longo deste artigo é vasto e complexo, o que impossibilita de ser coberto integralmente no presente artigo, portanto, caso esteja interessado no estudo do Direito Legislativo, recomendo fortemente a leitura dos artigos no nosso blog: Processo Legislativo e Legística: Como funciona a proposição e tramitação de Projetos de Lei Ordinária?; Processo legislativo brasileiro: o que é e como funciona?
Referências:
Direito Romano, ALVES, José Carlos Moreira, – 20 Ed- Rio de Janeiro: Forense, 2021.
Juízes Legisladores, CAPPELLETTI, Mauro – 3 Ed – Porto Alegue: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999.
O Conceito de Direito, HART, H. L. A. – 5 Ed – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2021.
Teoria Pura do Direito, KELSEN, Hans – 10 Ed – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2021.