Diante do cenário político brasileiro, o qual dispõe de características singulares, especialmente a grande quantidade de partidos políticos, é necessário observar qual seria o nível de autonomia das agremiações e as possibilidades de controle externo.
A Constituição Federal, há 30 anos, expressou, por meio do art. 17, § 1º, da Constituição Federal, a necessidade de conferir autonomia aos partidos políticos brasileiros, para que estes preservassem sua identidade de pensamento e de organização.
Garantiu ainda, o constituinte originário, a exigência de filiação aos partidos políticos para quem desejasse se candidatar a cargo político. Ou seja, as agremiações foram alçadas à condição de condutores legítimos ao poder no Estado Democrático de Direito.
Nesse sentido, é importante entender a estrutura e os limites dessa autonomia, visando compreender sua natureza jurídica e sua aplicação prática.
A Autonomia Partidária em um Panorama Constitucional
Garantir o exercício da autonomia implica, assim, em reduzir ou eliminar os mecanismos de controle externo sobre a atuação de certos indivíduos ou entidades. A autonomia partidária no Brasil se refere ao conjunto de direitos e garantias que os partidos políticos possuem para se organizarem e atuarem livremente no cenário político.
Ao trabalharmos com os conceitos de autonomia e liberdade partidária, é necessário realizar um recorte quanto ao exercício da referida prerrogativa. De um lado, temos a autonomia dos diretórios nacional, estadual e municipal perante terceiros, e, de outro, temos a autonomia interna corporis.
Ou seja, podemos evidenciar a independência, em alguma medida, das agremiações regionais e federais, umas em relação às outras perante obrigações firmadas junto a terceiros, assim como podemos evidenciar a referida garantia em uma visão intrapartidária.
A Estrutura e Organização Interna dos Partidos na Constituição
De acordo com o artigo 17, § 1º, da Constituição de 1988, o legislador garantiu aos partidos políticos a liberdade para definir suas estruturas internas e determinar a forma e a duração de seus órgãos, sejam eles permanentes ou temporários. O referido artigo trata a temática da seguinte forma:
Art. 17: É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os preceitos de fidelidade partidária, além de outros princípios estabelecidos na Constituição.
(…)
§ 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna e estabelecer regras sobre escolha, formação e duração de seus órgãos permanentes e provisórios e sobre sua organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações nas eleições majoritárias, vedada a sua celebração nas eleições proporcionais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária.
Podemos dividir o referido dispositivo constitucional em algumas facetas a serem analisadas: (i) estrutura, organização e funcionamento interno; (ii) fidelidade partidária; e (iii) decisões estratégicas e políticas vinculadas à escolha de coligações e alianças.
Isso garante a liberdade dos partidos políticos se constituírem, desde que se atentem a: preservação da democracia, do pluripartidarismo e dos direitos fundamentais.
A Constituição menciona a questão da fidelidade partidária, que foi posteriormente regulamentada, além de ser um princípio importante no sistema eleitoral brasileiro. Esta fidelidade partidária garante que o mandato pertencente ao partido não seja desvirtuado por práticas que levem o parlamentar a mudar de partido sem justificativa legítima, sob pena de perder o cargo.
A autonomia partidária, embora garantida, não é absoluta. Os partidos precisam respeitar os princípios constitucionais ditados no teor da referida norma, como (i) a democracia interna, garantindo participação dos filiados nas decisões; (ii) o não uso de organizações paramilitares, que poderia comprometer o regime democrático; e (iii) a transparência na prestação de contas à Justiça Eleitoral.
Em suma, a autonomia partidária se limita, em certa medida, a cláusulas pétreas previstas na Constituição Federal.
Importante destacar que a Constituição trouxe a novidade de que os partidos políticos passariam a ter personalidade jurídica de direito privado, porquanto, “no Brasil, até a promulgação da Constituição de 1988, os partidos políticos, de acordo com a Lei 5.682/71, eram consideradas pessoas jurídicas de direito público”.
Um dos mais emblemáticos julgamentos do TSE, referentes ao tema, consiste na Consulta n. 1.407/2007, de relatoria do Ministro Ayres Britto, na qual firmou-se o entendimento de que os partidos políticos se assemelham às associações.
Em trecho da ementa, extrai-se a seguinte comparação que reforça a tese firmada: “todo agente público é gente antes de ser agente, o partido político é associação antes de ser partido“.
Ao mesmo passo, o Ministro aplica as regras relativas às associações ao funcionamento dos partidos políticos, especialmente a liberdade de associação, a intervenção mínima e a impossibilidade de reunião para atividade de caráter militar:
“enquanto modalidade de associação, todo partido político é constituído por uma reunião formal de pessoas do mundo do ser para compor uma outra realidade, abstrata ou ideal, chamada de ‘pessoa jurídica’. Pessoa jurídica ou pessoa plural. Coletiva. Não de acordo com a lista que se lê nos incisos de I a V do art. 44 do Código Civil brasileiro, porém como expressão do direito individual que a nossa Constituição vocaliza por esta forma: ‘é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter militar” (inciso VII do art. 5º).
Na oportunidade do julgamento do Registro De Partido Político 2978239/DF, o Ministro Tarcísio Carvalho destacou que há muito superado o entendimento de que a autonomia partidária ostenta caráter absoluto, mas, ao contrário, deve se pautar pelos valores e regras decorrentes do regime democrático e do sistema representativo, bem como pela observância aos direitos fundamentais assegurados pela Carta Magna“.
Autonomia das agremiações perante terceiros
Já em relação à autonomia entre os diretórios partidários perante terceiros, é importante trazer um panorama legislativo acerca do tema.
Prevendo a possibilidade de os fornecedores não receberem os valores acordados com a campanha eleitoral de um(a) candidato(a), em 2008, foi incluído, na Lei dos Partidos Políticos (Lei n° 9.096/95), o artigo 15-A, que previa que a responsabilidade exclusiva do órgão partidário que deu causa à divida, o dever de quitá-la.
Em 2009, com advento da Lei n° 12.034/09, foram incluídas as dívidas trabalhistas na redação do artigo 15-A da referida Lei.
Ao mesmo passo, a Lei nº 12.034/09 trouxe alteração no texto da Lei das Eleições (Lei n° 9.504/97), incluindo em seu artigo 29 os parágrafos 3° e 4°, os quais transferem a responsabilidade das dívidas oriundas de campanha dos candidatos de um partido à direção partidária a ele(a) vinculado:
O § 2° do dispositivo legal supramencionado estabelece a penalidade a ser imposta ao diretório que não obtiver a prestação de contas encaminhadas, e eventualmente consideradas não prestadas/prestadas com ressalvas, a qual inviabiliza a diplomação dos candidatos eleitos.
Por mais que a redação do artigo 29 e seus parágrafos tenham uma redação clara, o tema foi levado, em sede de Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) n° 31-DF, para que o Supremo Tribunal Federal analisasse a constitucionalidade do artigo 15-A da Lei dos Partidos Políticos, com redação dada pela Minirreforma Eleitoral de 2009.
Decisão do STF sobre a Autonomia dos Diretórios Partidários
Em 22/09/2021, a referida ação foi julgada procedente, reconhecendo a constitucionalidade da divisão de responsabilidades entre os diretórios municipais, estaduais e nacional de cada partido, com vistas a evitar que órgãos de direção partidária sem nenhum vínculo direto com a referida despesa sejam responsabilizados indevidamente.
À época, o Ministério Público, representado pelo Procurador-Geral da República Augusto Aras, entendia que os diretórios não estão subordinados entre si em assuntos de natureza interna, pois todas as unidades dos partidos devidamente organizados e registrados no TSE, com capacidade jurídica e eleitoral, gozam da autonomia constitucional conferida pelo artigo 17.
Segundo Aras, estender ao órgão nacional a responsabilidade por condutas dos órgãos municipais ou estaduais estimularia gestões temerárias.
Nesse sentido, o Supremo reconheceu a constitucionalidade do artigo 15-A, da Lei dos Partidos Políticos, inviabilizando que uma dívida pudesse atingir outros órgãos partidários, diverso daquele que contraiu a obrigação.
Cumpre ressaltar que outros casos acerca da referida temática já foram julgados pelo colegiado da Primeira e Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, desta vez em controle concreto de constitucionalidade.
Como se observa, a autonomia partidária é um pilar essencial do sistema democrático brasileiro, pois garante a livre criação e atuação dos partidos políticos sem a interferência do Estado, enquanto mantém mecanismos de controle, transparência e fiscalização para evitar abusos.
A Constituição, ao assegurar essa autonomia, busca equilibrar a liberdade dos partidos com a necessidade de preservar o regime democrático e os direitos fundamentais.
Conclusão
Quando trabalhamos acerca de agremiações partidárias, tratamos acerca do exercício da democracia de forma coletiva, a partir da associação entre pessoas físicas que se alinham acerca de temas de natureza política.
Nesse sentido, qualquer intervenção externa, e em descompasso com a normas intrapartidárias, tem sido considerada uma violação à autonomia partidária.
Conforme estabelece a legislação federal em matéria eleitoral e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, está evidente que a autonomia partidária tem como um dos seus limites, sendo este o principal, a impossibilidade de violação ao pacto federativo e cláusulas pétreas da Constituição Federal.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVIM, Frederico Franco. Curso de Direito Eleitoral. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2016, p. 216.
BARROS, Francisco Dirceu. Curso de processo eleitoral. 3. ed., Rio de Janeiro: Elsevier, 2014, p. 40.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Registro De Partido Político 2978239/DF, Relator(a) Min. Tarcisio Vieira De Carvalho Neto, Acórdão de 15/10/2020, Publicado no(a) Diário de Justiça Eletrônico 221, data 03/11/2020.