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Omissão como técnica legislativa e o expansivo papel judicial

Introdução

A omissão legislativa, frequentemente compreendida apenas como lacuna ou falha do legislador, pode também ser empregada de forma intencional, configurando-se como uma técnica legislativa legítima. Ao não regular determinada matéria de forma exaustiva, o legislador deixa margem para que a interpretação e aplicação do direito sejam moldadas pela realidade social, pela evolução cultural e, principalmente, pela atuação dos tribunais. Esse fenômeno, contudo, traz implicações profundas para o equilíbrio entre os Poderes e para a segurança jurídica, especialmente em contextos de ativismo judicial ou de crescente protagonismo do Judiciário.

O objetivo deste texto é examinar a omissão como técnica legislativa, diferenciando-a da omissão inconstitucional ou indevida, e discutir como essa estratégia legislativa impacta o papel do Poder Judiciário, levando, muitas vezes, a uma expansão significativa de sua função normativa e política.

1. O que é omissão como técnica legislativa

A omissão como técnica legislativa consiste na escolha deliberada do legislador de não disciplinar integralmente determinada matéria, deixando espaços normativos em aberto. Essa opção pode ocorrer por diferentes razões.

A flexibilidade interpretativa permite, ao evitar rigidez normativa, que a norma seja adaptada a múltiplas situações pelo legislador. Além disso, em áreas de rápida evolução, como o direito digital ou ambiental, a ausência de regulação exaustiva evita a obsolescência precoce.

Em casos de rápida evolução, é necessário observar os valores que regem o direito. Em vez de detalhar minuciosamente condutas, a lei pode remeter a valores ou diretrizes amplas, confiando na atuação interpretativa posterior.

Nesse sentido, a omissão técnica não é sinônimo de lacuna involuntária ou de descuido, mas uma forma de “normatividade aberta”, cujo preenchimento depende de interpretação judicial, regulamentação administrativa ou desenvolvimento doutrinário.

2. Diferença entre omissão técnica e omissão inconstitucional

Importa diferenciar a omissão como técnica legislativa da omissão inconstitucional. Esta última ocorre quando o legislador deixa de editar norma essencial para tornar exequível um direito fundamental ou cumprir mandamento constitucional expresso. Exemplo típico são as leis que deveriam regulamentar dispositivos constitucionais de eficácia limitada e cuja ausência impede a fruição do direito.

No caso da omissão técnica, o núcleo do direito está protegido e operacionalizado, mas o legislador opta por não definir exaustivamente suas hipóteses de aplicação. Na omissão inconstitucional, há um déficit normativo que gera lesão ou ameaça concreta a direitos, passível de controle concentrado por meio de ações como o Mandado de Injunção ou a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO).

Essa distinção é fundamental porque, no primeiro caso, a omissão decorre de estratégia normativa legítima; no segundo, configura afronta à Constituição e exige resposta institucional.

3. Razões políticas e jurídicas para o uso da omissão

O legislador pode recorrer à omissão como técnica por razões políticas e jurídicas distintas. Em temas polarizados, uma regulação detalhada pode inviabilizar a aprovação de um projeto de lei. A adoção de conceitos abertos permite que diferentes grupos aceitem o texto, deixando a concretização para o futuro.

Além disso, a omissão deliberada transfere parte da concretização normativa para outros Poderes, distribuindo responsabilidades a outros agentes. Ao evitar detalhamentos excessivos, o legislador reduz o risco de obsolescência e simplifica a estrutura normativa.

No entanto, essa estratégia pode gerar efeitos colaterais indesejados, como insegurança jurídica, judicialização excessiva e enfraquecimento do próprio Legislativo.

4. O papel do Judiciário no preenchimento das omissões

Quando o legislador opta por uma norma aberta ou incompleta, o Judiciário atua como intérprete e concretizador dos princípios e valores subjacentes. Isso pode se dar de forma:

  1. Normativa: Ao fixar entendimentos vinculantes (por exemplo, por meio de súmulas, teses de repercussão geral ou temas de IRDR);
  2. Casuística: Ao resolver situações concretas que servirão de precedente; e
  3. Proativa: Ao suprir omissões inconstitucionais com soluções provisórias, até que sobrevenha a regulação legislativa.

Em democracias constitucionais, essa atuação é inevitável, pois a aplicação prática de princípios gerais exige escolhas interpretativas. O problema surge quando o Judiciário deixa de se limitar à concretização e passa a inovar substancialmente na ordem jurídica, assumindo funções que seriam próprias do Legislativo.

5. O expansivo papel judicial: ativismo ou protagonismo inevitável?

A omissão legislativa, sobretudo quando reiterada ou politicamente conveniente, pode levar a um expansivo papel judicial. Esse fenômeno é visível em diversas áreas do direito brasileiro:

  1. Direitos fundamentais: O Supremo Tribunal Federal (STF) já reconheceu uniões homoafetivas, descriminalizou condutas e fixou parâmetros de políticas públicas na ausência de lei específica; 
  2. Direito ambiental: A Corte tem determinado obrigações concretas ao Poder Público diante de omissões em políticas climáticas, pautando suas decisões com base na hermenêutica constitucional mais adequada; e
  3. Direito eleitoral: Interpretações sobre fidelidade partidária, cotas de gênero e combate à desinformação foram moldadas majoritariamente por decisões judiciais, não por leis claras.

O debate central é saber se esse protagonismo é ativismo judicial – caracterizado por extrapolação dos limites institucionais – ou apenas o resultado de um desenho constitucional que confere ao Judiciário papel garantidor em face das omissões legislativas.

6. Riscos e benefícios da ampliação do papel judicial

A expansão do papel do Judiciário tem vantagens e desvantagens que precisam ser ponderadas. A proteção de direitos fundamentais, que visem o retrocessos e concretize garantias constitucionais; a atualização do direito e rápida resposta às mudanças sociais e tecnológicas; e a pressão institucional para induzir o Legislativo a agir, são parte dos benefícios da atuação judicial em face dessas omissões.

Todavia, observa-se uma série de riscos, como o déficit democrático, uma vez que juízes não são eleitos, e suas decisões de grande impacto social tomadas sem debate parlamentar podem fragilizar a legitimidade do sistema. Ademais, a depender da composição do tribunal ou da evolução jurisprudencial, entendimentos podem mudar rapidamente. Por fim, temas que deveriam ser resolvidos por representantes eleitos migram para a arena judicial.

7. Caminhos para o equilíbrio institucional

O equilíbrio entre a omissão legislativa como técnica e o papel do Judiciário exige alguns cuidados

Inicialmente, o legislador deve indicar expressamente quando uma norma é aberta por opção técnica, reduzindo margens para interpretações de inércia. Além disso, ferramentas como ADO e mandado de injunção precisam ter aplicação célere, evitando longos períodos sem regulamentação.

Importante destacar que o Judiciário pode proferir decisões moduladas, concedendo prazo para atuação legislativa antes de impor soluções definitivas. Para melhor efetividade, as audiências públicas e consultas são instrumentos que conferem legitimidade às decisões judiciais em temas de alta relevância.

8. Exemplos ilustrativos

Podemos destacar 3 (três) pautas em que o Supremo Tribunal Federal se debruçou em matérias que o Poder Legislativo foi omisso:

  1. União estável homoafetiva (STF, ADPF 132 e ADI 4277) – A Constituição garantia a proteção à família, mas sem detalhar todas as formas de união. O Congresso não legislou sobre uniões homoafetivas, e o STF supriu a lacuna com interpretação ampliativa.
  2. Fidelidade partidária (MS 26.602 e correlatos) – Não havia lei disciplinando a perda de mandato por troca de partido. O STF, diante da omissão, fixou a tese de que o mandato pertence ao partido no sistema proporcional.
  3. Política climática (ADPF 708) – Diante da inércia do Executivo e ausência de normatividade clara, o STF determinou medidas específicas para operacionalizar o Fundo Clima.

Esses casos mostram que a omissão legislativa pode ser espaço para inovação judicial, mas também fonte de debate sobre os limites da jurisdição constitucional.

Conclusão

A omissão como técnica legislativa é um recurso legítimo e, em muitos casos, necessário para a elaboração de leis adaptáveis e perenes. Entretanto, quando essa omissão ultrapassa o limite da estratégia e se transforma em inércia inconstitucional, abre-se espaço para uma atuação judicial expansiva que altera o equilíbrio entre os Poderes.

O desafio está em estabelecer fronteiras claras: o Judiciário deve atuar como garantidor e concretizador de direitos, mas sem substituir o processo político democrático. Ao mesmo tempo, o Legislativo precisa assumir sua função normativa, evitando transferir de forma sistemática ao Judiciário a responsabilidade por decisões estruturais.

O uso consciente da omissão técnica, aliado a mecanismos de controle institucional e participação social, pode preservar a legitimidade do sistema, assegurando que o espaço deixado pelo legislador seja preenchido com equilíbrio, responsabilidade e respeito ao princípio da separação dos Poderes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRAGA, Amanda Queiroz. A expansão da atividade jurisdicional como forma de deslocamento da autoridade representativa analisada a partir da Constituição Federal de 1988. Revista de Direito, v. 17, n. 02, p. 01-30, 2025.

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DA SILVA LIMA, Evelly. ATIVISMO JUDICIAL DIANTE DE OMISSÃO LEGISLATIVA INCONSTITUCIONAL. REVISTA IURIS NOVARUM-ISSN 2764-247X, v. 3, n. 2, 2023.

NOGUEIRA, Millena Alves. Análise jurídico-constitucional da criminalização da homofobia: da omissão legislativa ao ativismo judicial. 2019.

SILVEIRA, Daniela Gonsalves da. A legitimidade do STF para tutelar direitos fundamentais diante da omissão legislativa. 2016.

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