Introdução
A intensificação das mudanças climáticas se tornou um debate inescapável da nossa geração. O aumento da frequência e da intensidade de eventos extremos – enchentes, secas prolongadas, tempestades violentas, incêndios florestais – desafia não apenas a gestão pública e os organismos internacionais, mas também as estruturas tradicionais do direito privado.
Em um mundo marcado por riscos climáticos cada vez mais severos, surge a indagação: está o direito privado preparado para lidar com um cenário de colapso climático?
Dentro desse debate, o seguro climático desponta como um dos instrumentos mais promissores, ainda que insuficiente, para redistribuir riscos, garantir certa previsibilidade econômica e, de forma indireta, induzir comportamentos sustentáveis.

I – O seguro como resposta ao risco climático
O seguro, em sua essência, é uma técnica de transferência e mutualização de riscos. Ao longo da história, desempenhou papel central em contextos de incerteza: desde a navegação marítima na Idade Moderna até a industrialização.
No entanto, o risco climático apresenta uma especificidade inédita: sua universalidade e a impossibilidade de eliminação. Diferentemente de riscos localizados ou individualizados, o colapso ambiental atinge transversalmente setores produtivos, populações e territórios inteiros. É nesse contexto que o seguro climático assume relevância.
Trata-se de uma modalidade voltada a cobrir danos relacionados a eventos extremos vinculados às mudanças do clima, tais como perdas agrícolas por seca, destruição de imóveis por enchentes ou interrupção de atividades econômicas em razão de desastres naturais.
Em países em desenvolvimento, especialmente aqueles com forte dependência agrícola, esse instrumento pode significar a sobrevivência de pequenos produtores e comunidades vulneráveis.
Entretanto, o desafio é estrutural, e tem como foco calcular prêmios de seguro em um cenário no qual os eventos se tornam cada vez mais frequentes, graves e imprevisíveis. A lógica atuarial, baseada em probabilidades estatísticas, encontra-se tensionada pela aceleração elástica da crise climática.
II – O papel do Direito Privado
O direito privado, tradicionalmente voltado à regulação das relações patrimoniais e contratuais entre indivíduos, passa a ser convocado a enfrentar problemas que transcendem interesses meramente individuais.
A questão climática impõe ao direito privado a necessidade de reconfiguração de institutos clássicos – responsabilidade civil, contratos, seguros, propriedade – a partir de um olhar coletivo e preventivo.
No campo do seguro, essa adaptação já se manifesta em diversas dimensões. As seguradoras, por exemplo, têm inserido cláusulas de exclusão para certos riscos considerados incuráveis.
Isso levanta questões jurídicas sobre a função social do contrato de seguro e sobre os limites da autonomia privada em um mercado que lida com riscos difusos. Afinal, se a lógica securitária for pautada unicamente pelo cálculo individual de risco, milhões de pessoas em áreas vulneráveis estarão excluídas de qualquer proteção.
Nesse ponto, surge o debate sobre a necessidade de mecanismos híbridos, em que Estado, setor privado e organismos internacionais compartilhem responsabilidades. O direito privado, por si só, não tem condições de sustentar um mercado de seguros capaz de cobrir integralmente as perdas climáticas.
A experiência internacional mostra que, sem subsídios públicos, garantias governamentais ou fundos de resseguro coletivos, os prêmios tornam-se inacessíveis e o sistema colapsa.
III – Seguro Climático e Justiça Social
Outro aspecto relevante é o da justiça distributiva e a razão social dos contratos e das empresas. As mudanças climáticas atingem desproporcionalmente populações mais pobres, menos capazes de absorver os custos da proteção privada.
Se o seguro climático se tornar um produto disponível apenas para grandes empresas ou proprietários de imóveis em áreas nobres, estar-se-á ampliando desigualdades já existentes.
Nesse cenário, o direito privado deve dialogar com o direito público e com os princípios constitucionais de solidariedade, dignidade humana e função social da atividade econômica. Uma política de seguro climático que ignore esses vetores pode resultar em exclusão massiva.
A experiência de microseguros climáticos em países africanos e asiáticos mostra alternativas interessantes: prêmios baixos, cobertura simplificada e utilização de tecnologias como satélites para monitorar secas ou chuvas excessivas. Essas soluções, embora incipientes, apontam caminhos de inclusão.
IV – O impacto na responsabilidade civil
O debate sobre seguro climático também se conecta ao regime da responsabilidade civil ambiental. À medida que se intensificam os litígios climáticos, surge a discussão sobre a possibilidade de responsabilização de empresas e até de Estados por omissão ou contribuição para o agravamento da crise.
O seguro, nesse contexto, pode funcionar como mecanismo de reparação coletiva, financiando fundos de compensação. Entretanto, há risco de moral hazard: se empresas poluidoras puderem simplesmente contratar seguros para eventuais danos climáticos, isso pode reduzir o incentivo à mitigação.
Por isso, é essencial que o direito privado, ao estruturar o mercado securitário, o faça em sinergia com o direito ambiental e regulatório, impondo critérios de sustentabilidade, premiação de condutas responsáveis e restrições a atividades altamente emissoras.
V – O Direito Comparado e as experiências regulatórias
No cenário internacional, diversos países vêm experimentando modelos de seguros climáticos. Nos Estados Unidos, o National Flood Insurance Program (NFIP) oferece cobertura subsidiada para áreas de risco de enchentes.
Na União Europeia, discute-se a criação de um sistema de resseguros climáticos integrados, diante da crescente pressão sobre seguradoras nacionais.
No Brasil, o tema ainda é embrionário, embora o setor agrícola conte com o Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural, que busca ampliar a contratação de seguros contra eventos climáticos.
Essas experiências revelam uma tendência: o mercado securitário sozinho não é capaz de lidar com os impactos de um mundo em colapso ambiental. É necessário um arcabouço regulatório que combine incentivos estatais, responsabilidades privadas e instrumentos de solidariedade social.
VI – O seguro climático como vetor de transformação
Apesar dos limites, o seguro climático não deve ser visto apenas como instrumento compensatório. Ele pode atuar como verdadeiro indutor de mudanças comportamentais. Seguradoras, ao precificar riscos, podem premiar atividades sustentáveis e punir economicamente práticas poluidoras.
Empresas que adotem medidas de mitigação e adaptação – telhados verdes, infraestrutura resiliente, redução de emissões – podem obter prêmios menores. Assim, o mercado securitário torna-se um mecanismo indireto de governança climática.
Nesse sentido, o direito privado tem papel estratégico: formular contratos de seguro que incorporem cláusulas de sustentabilidade, que condicionem a cobertura a práticas responsáveis e que estabeleçam deveres de informação e transparência. O contrato deixa de ser mero instrumento bilateral e passa a ser vetor de transformação social.
VII – Um Direito Privado em crise?
A grande questão é se o direito privado, concebido historicamente para regular relações horizontais entre indivíduos, possui plasticidade suficiente para enfrentar uma crise civilizatória global. Há quem sustente que o colapso climático exige soluções de direito público, de caráter regulatório, coletivista e até mesmo autoritário.
Contudo, não se deve subestimar a capacidade do direito privado de se reinventar. A teoria da função social do contrato, da propriedade e da empresa já demonstrou, no Brasil, como institutos privados podem ser ressignificados à luz de valores constitucionais.
O seguro climático insere-se exatamente nesse ponto de inflexão. É privado em sua forma, mas público em sua função. É contrato, mas também política pública. É negócio jurídico, mas também expressão de solidariedade. Se bem estruturado, pode ser um elo entre os mundos privado e coletivo, articulando interesses econômicos com exigências de justiça climática.

Conclusão
Responder à pergunta “o direito privado está preparado para um mundo em colapso?” exige reconhecer as ambivalências atinentes ao tema.
Por um lado, o arcabouço atual mostra-se insuficiente: cláusulas excludentes, prêmios inacessíveis, exclusão de populações vulneráveis e risco de incentivo à poluição. Por outro, há potencial transformador: seguros climáticos podem garantir resiliência econômica, redistribuir perdas e induzir comportamentos sustentáveis.
O direito privado não está plenamente preparado – mas tem instrumentos para se adaptar. Isso depende de escolhas normativas, de regulação estatal adequada, de cooperação internacional e de uma mudança de mentalidade no mercado segurador. Se o seguro climático for tratado apenas como produto financeiro, pouco contribuirá. Se, ao contrário, for concebido como ferramenta de solidariedade, responsabilidade e governança, poderá ser um dos pilares de resistência em um mundo marcado pelo colapso climático.
Em última análise, a preparação do direito privado dependerá de sua abertura para transcender fronteiras clássicas e dialogar com princípios de justiça ambiental, solidariedade social e sustentabilidade. O desafio não é menor do que reinventar a própria lógica securitária em face de uma crise sem precedentes..

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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MARQUES, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental. Editora da UNICAMP, 2018.
MIRANDA, Igor Costa de et al. O Acordo de Paris e a cooperação transacional para o enfrentamento das mudanças climáticas. 2018.