O saneamento básico é um dos maiores desafios estruturais do Brasil. Durante décadas, a expansão dos serviços de água tratada e esgotamento sanitário avançou de forma desigual, deixando milhões de brasileiros à margem de um direito essencial à saúde e à dignidade. Foi nesse cenário que, em 2020, nasceu o novo Marco Legal do Saneamento, com a intenção de promover a universalização dos serviços até 2033.
Cinco anos depois da promulgação da Lei nº 14.026/2020, é hora de analisar os impactos práticos dessa legislação. O que mudou na realidade dos municípios? Os investimentos saíram do papel? E quais ainda são os obstáculos para que a universalização se torne realidade?

O que é o Marco Legal do Saneamento?
O Marco Legal do Saneamento, instituído pela Lei nº 14.026/2020, representa uma atualização significativa da legislação brasileira sobre saneamento básico, complementando a Lei nº 11.445/2007.
Seu principal objetivo é alcançar, até 31 de dezembro de 2033, a universalização dos serviços de saneamento, garantindo que 99% da população tenha acesso à água potável e 90% à coleta e tratamento de esgoto.
Para atingir essas metas ambiciosas, a lei introduziu diversas inovações:
- Obrigatoriedade de licitação: todos os contratos de prestação de serviços de saneamento devem ser precedidos de licitação, promovendo a concorrência e buscando maior eficiência na prestação dos serviços.
- Comprovação de capacidade econômico-financeira: as empresas operadoras devem demonstrar capacidade financeira para cumprir as metas estabelecidas, assegurando a viabilidade dos projetos.
- Fortalecimento da regulação: a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) passou a ter a competência de editar normas de referência para a regulação dos serviços de saneamento, promovendo maior uniformidade e segurança jurídica no setor.
- Incentivo à regionalização: a lei estimula a formação de blocos regionais de municípios para a prestação dos serviços, visando ganhos de escala e a viabilidade econômica, especialmente em localidades menos atrativas para investimentos privados.
Essas medidas não apenas promovem a modernização do setor de saneamento, como também têm o propósito de estruturá-lo de forma a atrair investimentos, viabilizando a prestação eficiente e universalizada dos serviços em todo o território nacional.
Tal avanço contribui diretamente para a efetivação de normas constitucionais que visam à redução das desigualdades sociais e regionais — um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, conforme previsto no art. 3º, inciso III, da Constituição Federal.
Além disso, a organização regionalizada e coordenada dos serviços de saneamento dialoga diretamente com o art. 43 da Constituição, que autoriza a atuação articulada da União em complexos geoeconômicos e sociais para promover o desenvolvimento equilibrado e combater as disparidades regionais.
Também se alinha às diretrizes do art. 200, inciso IV, que atribui ao Sistema Único de Saúde (SUS) a responsabilidade de participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico, reconhecendo a íntima conexão entre saúde pública e acesso universal a serviços essenciais como água potável e tratamento de esgoto.
Avanços observados após cinco anos
Desde a promulgação da Lei nº 14.026/2020, o Marco Legal do Saneamento vem promovendo uma profunda transformação no setor. A nova legislação rompeu com o antigo modelo centrado em empresas públicas estaduais, que apresentava baixos níveis de investimento e evolução lenta na cobertura dos serviços. Em seu lugar, instituiu um ambiente mais competitivo, com incentivos à entrada da iniciativa privada e à melhoria da eficiência operacional.
Um dos principais avanços foi o aumento expressivo nos investimentos. Leilões realizados nos últimos cinco anos movimentaram cifras bilionárias em concessões, com destaque para projetos estruturantes nos estados do Rio de Janeiro, Alagoas e Amapá. Segundo o Ministério das Cidades, entre 2020 e 2024, os contratos firmados sob as novas regras somam compromissos de mais de R$ 100 bilhões em investimentos até 2033.
Esses contratos foram firmados com metas claras de expansão da cobertura, redução de perdas na distribuição de água e universalização do acesso aos serviços essenciais.
Outro avanço importante é o crescimento da participação do setor privado. Dados da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon) mostram que a presença da iniciativa privada saltou de 5% em 2020 para aproximadamente 30% em 2025. O número de municípios atendidos por operadores privados passou de cerca de 300 para mais de 1.600, refletindo o êxito dos novos modelos de concessão.
Além dos recursos financeiros, houve também ganhos em governança e regulação. A Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), com base no art. 21, inciso XX, da Constituição Federal — que trata da competência da União para instituir diretrizes para o saneamento — passou a editar normas de referência nacionais. Essas normas tratam de temas como a regulação tarifária, padronização de contratos e indicadores de desempenho, contribuindo para maior segurança jurídica e previsibilidade.
Ao fortalecer a governança do setor, o marco também contribui para a efetividade de políticas públicas de saúde (art. 196 da Constituição) e de combate às desigualdades regionais (art. 3º, III), pilares indispensáveis ao desenvolvimento social e à coesão federativa.
Gargalos e entraves ainda presentes
Apesar dos avanços, os desafios permanecem significativos. Um dos principais entraves é a dificuldade de regionalização em alguns estados, especialmente nas regiões Norte e Nordeste. Muitos municípios ainda resistem a integrar blocos regionais, por razões políticas ou por receio de perder autonomia.
Outro ponto crítico é a capacidade de fiscalização e regulação dos serviços. Embora a ANA estabeleça diretrizes nacionais, cabe aos entes locais — como agências estaduais e municipais — a aplicação efetiva das normas. Em muitos casos, esses órgãos ainda carecem de estrutura e capacitação.
Além disso, parte das empresas estatais enfrenta dificuldades para se adequar às exigências de capacidade econômico-financeira impostas pela lei. Algumas perderam espaço em leilões ou não conseguiram renovar contratos antigos, ficando em uma situação de insegurança jurídica.
A questão social e a tarifa
A universalização dos serviços de saneamento não é apenas uma meta técnica ou financeira — é um compromisso com a dignidade humana. Nesse sentido, um dos maiores desafios é equilibrar a sustentabilidade econômica dos projetos com a proteção das populações mais vulneráveis.
A cobrança de tarifa é fundamental para manter os serviços, mas também precisa ser acompanhada de mecanismos de subsídio e tarifa social. A Lei nº 14.026/2020 prevê instrumentos para assegurar o atendimento das populações de baixa renda, mas sua efetiva implementação ainda é desigual no país.
O papel da iniciativa privada e a competição por bons projetos
O novo marco legal abriu as portas para uma forte participação da iniciativa privada no setor de saneamento. O ambiente mais seguro para investimentos e as metas claras têm atraído operadores nacionais e internacionais.
A competição nos leilões tem gerado propostas com altas outorgas e compromissos ambiciosos. No entanto, há preocupações com o risco de sobrecontratação e o eventual descumprimento de metas por operadores despreparados ou superdimensionados.
Garantir que os contratos sejam bem estruturados, com metas factíveis e mecanismos de fiscalização efetiva, é essencial para evitar que a frustração substitua a expectativa de transformação.
Tecnologia e inovação como aliadas
A busca pela eficiência e pela universalização dos serviços passa, inevitavelmente, pela incorporação de novas tecnologias. Monitoramento em tempo real, georreferenciamento, telemetria e redes inteligentes de distribuição já são realidade em algumas operações privadas e públicas.
Além disso, o uso de soluções descentralizadas — como sistemas de tratamento de esgoto locais ou individuais — pode ser uma alternativa viável em áreas rurais e regiões de difícil acesso, reduzindo custos e ampliando a cobertura.
O papel dos municípios e a importância da governança local
Mesmo com um marco nacional, a efetivação dos avanços no saneamento depende da atuação coordenada entre União, estados e, principalmente, municípios. Cabe às prefeituras planejar, contratar e fiscalizar os serviços, ainda que por meio de blocos regionais ou consórcios públicos.
O fortalecimento da governança local, com apoio técnico e institucional, é condição indispensável para que os objetivos da lei sejam atingidos. Sem planejamento e capacitação nas gestões municipais, os investimentos não serão convertidos em serviços melhores.

Considerações finais
Os cinco anos do Marco Legal do Saneamento revelam avanços concretos na expansão dos serviços, atração de investimentos e fortalecimento da regulação, mas também evidenciam desafios estruturais que exigem preparo técnico e visão estratégica.
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Referências
ABCON SINDCON. Os desafios do saneamento após quatro anos de marco legal. Revista Canal, 16 maio 2024. Disponível em: https://abconsindcon.com.br/revista-canal/os-desafios-do-saneamento-apos-quatro-anos-de-marco-legal/.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
BRASIL. Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020. Atualiza o marco legal do saneamento básico. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 16 jul. 2020. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14026.htm.
BRASIL. Ministério das Cidades. Marco Legal do Saneamento. Disponível em: https://www.gov.br/cidades/pt-br/assuntos/saneamento/marco-legal-do-saneamento.
ORTEGA, Fernanda Boaventura. O impacto dos 5 anos do Marco Legal do Saneamento: avanços, desafios e oportunidades. Consultor Jurídico, São Paulo, 20 fev. 2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-fev-20/o-impacto-dos-cinco-anos-do-marco-legal-do-saneamento-basico-avancos-desafios-e-oportunidades/.