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Combate à criminalidade e direitos fundamentais: desafios do uso de bancos de perfis genéticos

Todo delito deixa vestígio?

A teoria de Locard, desenvolvida por Edmond Locard, responde afirmativamente a esse questionamento: quaisquer que sejam os passos, os objetos tocados por um indivíduo, suas pegadas ou digitais, o seu cabelo, as fibras das suas calça, o sangue, ou outros líquidos corporais que deixe. Tudo isso carrega uma testemunha silenciosa, um fragmento de prova a ser mapeado.

A tecnologia certamente contribuiu na elucidação de milhares de crimes que deixaram um vestígio oculto, escondido pelas suas mais diversas artimanhas da figura delituosa. Logo, pensar na possibilidade de comparar um material biológico porventura deixado na cena de crime, com o DNA de suspeitos, é mais uma visão inovadora da bioética no deslinde de investigações.

Isso decorre da elevada precisão do material genético contido no DNA. Com o avanço da engenharia genética, descobriu-se que a análise das cadeias de DNA de uma pessoa permite individualizá-la das demais, haja vista ser único o código genético de cada ser humano, salvo no caso de gêmeos.

No seio forense esse recurso detém uma carga preciosa frente a outros meios probatórios, especialmente por alcançar resultados provando a inocência ou indicando culpados de maneira mais assertiva.

Bancos de perfis genéticos no Brasil

No Brasil, a partir da Lei n° 12.654/12 que alterou as Leis n° 12.037/09 e 7.210/84, passou-se a admitir a coleta e armazenamento de dados em bancos de perfis genéticos para fins de identificação criminal, estabelecendo uma nova forma de investigação e contribuindo para a resolução de crimes, sobretudo homicídios e contra a liberdade e dignidade sexual.

A identificação criminal pelo DNA nada mais é que um tipo a mais de identificação, assim como a fotográfica e/ou datiloscópica realizadas nas delegacias, e amparadas no art. 5º, inciso LVIII da CRFB/88. 

A obtenção desse recurso é regulamentada pela Lei 12.654/12 e o seu armazenamento encontra-se disciplinado no Decreto 7.950/13 que cria e responsabiliza o Banco Nacional de Perfis Genéticos (BNPG) no gerenciamento desses materiais e na apuração de crimes, em benefício da justiça penal.

Além dos efeitos criminais, a utilização dos bancos de perfis genéticos é promissora na identificação de pessoas desaparecidas, onde a comparação de amostras de DNA fornecidas por parentes de vítimas é realizada de maneira livre e voluntária, o que se mostrou útil, inclusive, em situações de desastres naturais.

Identificação genética e seus desdobramentos na Lei de Execução Penal

Nos termos do art. 9º-A da Lei de Execução Penal, com redação dada pela Lei nº 13.964/2019, o condenado por crime doloso cometido com grave violência contra a pessoa, bem como por crimes contra a vida, contra a liberdade sexual ou crimes sexuais contra vulneráveis, será submetido compulsoriamente à identificação do perfil genético por meio da extração de DNA, realizada no momento de seu ingresso no estabelecimento penal, após condenação definitiva com trânsito em julgado.

Por derradeiro, cumpre destacar que a recusa pelo condenado na coleta do material biológico configura falta grave, evidenciando a natureza obrigatória da medida nos termos da legislação vigente.

Merece destaque que a reforma da LEP, promovida pela legislação de 2019, introduziu diversas disposições voltadas à proteção de garantias fundamentais, como a dignidade da pessoa humana e o direito à privacidade e à intimidade no âmbito da identificação genética.

Entre essas medidas, destacam-se: a vedação à realização de fenotipagem genética e à utilização do material biológico em buscas familiares para fins criminais (busca cruzada); a determinação do descarte das amostras após a análise; e a garantia de que o acesso aos dados seja realizado de forma estrita, confidencial e absolutamente controlada.

Ademais, o legislador esclareceu que não se trata de um banco de DNA no sentido amplo, mas de um banco de perfis genéticos, compostos por fragmentos que não revelam características fenotípicas, condições de saúde ou predisposições hereditárias.

Além disso, determinou a coleta desses materiais de maneira não invasiva, com o swab bucal em ambiente controlado e com supervisão técnica.

A (in)constitucionalidade da coleta de material genético em confronto com direitos fundamentais.

Contexto fático jurídico

A discussão quanto à constitucionalidade da inclusão e manutenção de perfil genético de condenados por crimes violentos ou por crimes hediondos em banco de dados estatal, está em tramitação no Supremo Tribunal Federal no âmbito do RE n. 973.837/MG – Tema 905, sob relatoria do Ministro Gilmar Mendes, que, inclusive, atua no magistério superior, lecionando na graduação e pós-graduação em Direito Constitucional no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

O caso concreto envolve um condenado por crime sexual contra vulnerável (artigo 217-A do Código Penal), que se recusou a fornecer material genético, conduta considerada falta grave pela LEP, com impacto na fruição de benefícios da execução penal.

As teses defensivas de inconstitucionalidade do caso oriundo do TJ/MG, sustentam que o dispositivo impugnado viola os princípios da não autoincriminação e do devido processo legal, ambos previstos no art. 5º, incisos LXIII e II, da CRFB/88.

Ademais, argumenta-se que a imposição da coleta compulsória de DNA configura ingerência indevida na esfera da vida privada do indivíduo, retirando-lhe a possibilidade de optar por não colaborar em futuros procedimentos criminais, ferindo diretamente o art. 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), que assegura garantias judiciais mínimas no âmbito processual penal.

O Procurador de Justiça André Ubaldino Pereira, representante do Ministério Público de Minas Gerais, defendeu a constitucionalidade da medida ao sustentá-la como instrumento imprescindível ao enfrentamento da impunidade, a qual, em sua ótica, constitui a principal “raiz” da criminalidade no Brasil.

Para corroborar seu posicionamento, citou ainda o emblemático caso do denominado “Maníaco de Contagem”, ressaltando que a inexistência de um banco nacional de perfis genéticos pode representar obstáculo relevante à pronta identificação de autores de crimes de natureza serial.

Suscitou também que a realização do exame genético não conduz, necessariamente, à condenação do investigado ou acusado, mas amplia o espectro das possibilidades investigativas, conferindo maior segurança na identificação dos presumidos autores de delitos. 

Alega que a norma institui garantias voltadas à prevenção do uso indevido dos dados, impondo a exigência de ordem judicial para acesso ao banco de perfis, assegurando o sigilo das informações e determinando o descarte do material biológico após a realização do exame. 

Destacou, por fim, que, tal medida revela-se relevante diante do cenário atual, em que os Tribunais Superiores, notadamente, o Superior Tribunal de Justiça, reiteradamente aponta a fragilidade de meios tradicionais de prova, como o reconhecimento fotográfico e a prova testemunhal, frequentemente comprometidos por falsas ou imprecisas memórias, levantando críticas quanto à confiabilidade epistêmica da interpretação judicial. 

O Relator, Ministro Gilmar Mendes, assinalou que a controvérsia envolve a definição dos limites constitucionais à atuação estatal na coleta, processamento e utilização de dados biológicos de indivíduos submetidos à custódia penal.

E, ainda, que no plano internacional – notadamente no âmbito da jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos – a proteção das informações genéticas é tratada como dimensão essencial do direito fundamental à privacidade, intrinsecamente relacionada à salvaguarda da dignidade da pessoa humana.

Em 7/8/2025, o STF iniciou o julgamento sobre a constitucionalidade da coleta obrigatória e do armazenamento, no Banco Nacional de Perfis Genéticos, de material genético de condenados por crimes violentos ou hediondos. O processo ainda está pendente de decisão definitiva, e a sessão foi dedicada exclusivamente às sustentações orais.

Entendimento doutrinário e jurisprudencial

Guilherme Souza Nucci aponta que não há inconstitucionalidade quanto à coleta de material genético após a condenação definitiva. Revela que se trata de segurança jurídica de não se processar uma pessoa em lugar de outra, medida que visa evitar um dos piores erros judiciários possíveis.

Aduz que a identificação criminal, quanto mais segura, melhor. O Estado passa a ter a possibilidade de apurar crimes e sua autoria com maior precisão, evitando processar um indivíduo em lugar de outro em razão de falhas ou inconsistências na documentação coletada, frequentemente sujeita a diversos tipos de falsificação.

Vai além ao sustentar que a coleta de material genético deveria ser obrigatória para todos os condenados, como forma de prevenir erros judiciários, independentemente da gravidade do crime.

Faz a comparação com situações cotidianas: quando uma câmera de segurança registra um delito, a polícia utiliza as imagens para localizar o suspeito; ou ainda, quando se colhe a impressão datiloscópica no local da infração, possibilitando a identificação do agente. 

Nesses casos, cuida-se de aperfeiçoamento do sistema investigatório. O acusado não forneceu, obrigatoriamente, material algum para fazer prova contra si mesmo. O ponto de vista para ele é outro: o Estado colheu dados noutras fontes e confrontou com um perfil genético já existente.

Para Priscila Campelo, delegada da Polícia Federal na época, e professora da pós-graduação lato sensu no IDP, a Lei n.º 12.654/2012 não apresenta inconstitucionalidade quanto à coleta compulsória de material biológico, mas um alicerce para o amadurecimento das atividades investigativas da polícia judiciária. Defende que não se pode enfraquecer ou prejulgar um instrumento que acresce notadamente à realização da justiça e contemporiza com as garantias constitucionais.

O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento de ser possível a determinação de coleta de material genético como forma de identificação criminal, seja durante as investigações, para apurar a autoria do delito, seja quando o réu já tiver sido condenado pela prática dos crimes de violência de natureza grave contra a pessoa ou hediondos. (RHC n. 69127/DF, rel. Min. Felix Fischer j.26.10.16)

Entende que a referida obrigatoriedade constitui procedimento de classificação, individualização e identificação, apenas ampliando-se a qualificação do apenado em razão do avanço da tecnologia, não configurando métodos invasivos de intimidade. (EDcl no RHC n. 162.703/RS, rel. Min Rogerio Schietti Cruz, j.24.04.23 e STJ, HC n.879.757/GO, rel Min Sebastião Reis Junior, j. 20.08.24).

Em oposição, Aury Lopes Jr. alerta que, historicamente, o imputado — seja réu ou mero suspeito — era tratado como simples objeto de prova, o “objeto do qual deve ser extraída a verdade que funda o processo inquisitório”. A superação dessa visão, segundo o autor, fundamenta o direito de não produzir prova contra si mesmo, assegurando o silêncio e a autodefesa negativa.

De forma complementar, Eugênio Pacelli adverte que a criação de um banco nacional de perfis genéticos de condenados poderia transformar o indivíduo de inocente em suspeito, ultrapassando os limites do Estado de Direito e das liberdades fundamentais, ainda que reconheça o potencial benefício investigativo em casos de reiteração criminosa.

Afinal, é possível que a identificação e investigação criminal genética tenham harmonia com direitos fundamentais?

Toda matéria ocupa um lugar no espaço, possuindo uma extensão própria. Assim também ocorre no campo jurídico-penal: todo ilícito, ainda que praticado de forma dissimulada, deixa sua extensão no mundo fenomênico, isto é, vestígios que se materializam em rastros passíveis de identificação e valoração probatória no âmbito da persecução penal.

A ciência forense, e em particular a análise genética, constitui instrumento essencial para a identificação de vestígios criminais, possibilitando não apenas a elucidação da autoria de delitos, mas também a exclusão de pessoas inocentes, em estrita observância às garantias constitucionais do devido processo legal.

É necessário compreender que a tecnologia é progressiva e constante e que o modus operandi dos delitos caminha da mesma forma. O uso do DNA na persecução criminal gera um impacto na coletividade no tocante à segurança pública, principalmente quando se tem o pilar pela busca da verdade real.

Certamente, no cenário contemporâneo, a obtenção de informações pessoais configura atividade de elevada sensibilidade, na medida em que pode ensejar frequentes ameaças à esfera das liberdades individuais e, por conseguinte, ocasionar uma gradativa restrição aos direitos fundamentais.

Especificamente em relação aos bancos de perfis genéticos criminais, há, de certa forma, um potencial risco de vulneração da privacidade e intimidade das informações contidas nessas amostras. 

O desafio é conciliar eficiência investigativa e respeito às garantias fundamentais. Para isso, é indispensável que os bancos de perfis genéticos funcionem com sigilo absoluto, descarte de amostras após uso, finalidade restrita à investigação criminal e fiscalização rigorosa.

Se equilibrado com responsabilidade e transparência, o uso do DNA pode representar um avanço significativo para a justiça penal, sem abrir mão da proteção dos direitos individuais.

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