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Viabilidade dos risk-sharing agreements no Sistema Único de Saúde (SUS)

Já passou pela sua mente que o Sistema Único de Saúde pode estar pagando bilhões de reais por medicamentos que, em muitos casos, não entregam os resultados prometidos?

Se a resposta para essa pergunta for sim, fique atento que iremos desenvolver ainda mais o tema. Se for não, convido você a refletir sobre esse dilema cada vez mais presente no Brasil, especialmente diante da judicialização da saúde e da incorporação de terapias inovadoras de altíssimo custo. Por um lado, a Constituição assegura a saúde como direito fundamental (arts. 6º e 196 da CF/88), por outro, gestores públicos convivem diariamente com a difícil tarefa de equilibrar esse direito com a responsabilidade de proteger o orçamento e garantir políticas públicas eficientes.

E é nesse cenário dual que uma solução contratual ganha relevância: aqui estamos falando dos risk-sharing agreements (RSAs), também conhecidos como acordos de compartilhamento de risco. Nesses populares acordos no Reino Unido, Itália e França, o pagamento pelo medicamento é condicionado ao desempenho clínico real. Em termos simples, o Estado só paga se o medicamento realmente funcionar. Caso contrário, a conta não recai sobre o sistema público, mas sobre a indústria farmacêutica. Parece um cenário perfeito, não?

Em suma, esse modelo visa a resolução de duas tensões existentes e centrais nesse debate: a incerteza sobre a efetividade de medicamentos inovadores em contextos reais de uso e a pressão orçamentária causada pela judicialização e pela incorporação de tecnologias sem avaliação robusta. 

No Brasil, ainda que embrionária, a experiência existe. Em 2019, o Ministério da Saúde iniciou um projeto-piloto de acordo de risco para o medicamento nusinersena (Spinraza), indicado para atrofia muscular espinhal. Mais recentemente, em 2025, foi firmado o primeiro RSA de desempenho no SUS, relativo ao onasemnogene abeparvovec (Zolgensma), terapia gênica de altíssimo custo, cujo pagamento ficou atrelado a indicadores clínicos de resposta em pacientes com AME tipo I.

Atualmente, a questão que se coloca é se seria realmente viável expandir esse modelo no Brasil, tanto do ponto de vista jurídico quanto do institucional. 

Marco constitucional e legal

    Para iniciarmos essa análise, precisamos caminhar a partir da nossa ilustre Carta Magna, a Constituição Federal de 1988, que nos arts. 6º e 196 consagra a saúde como direito social e fundamental, atribuindo ao Estado o dever de prover acesso universal e igualitário. O ponto que vale destaque é que esse dever não é absoluto: deve ser interpretado em diálogo com os princípios da eficiência administrativa (art. 37) e da reserva do possível, que condicionam a atuação estatal à limitação dos recursos públicos disponíveis.

    Assim, o modelo RSA emerge como uma forma de harmonizar esses princípios, através da busca pela garantia do acesso a terapias inovadoras sem comprometer de maneira desproporcional o orçamento público, uma vez que atrela o desembolso financeiro ao alcance de resultados clínicos.

    Para evitar qualquer confusão, cabe ressaltar, também, que a Lei 8.080/1990, que organiza o SUS, estabelece os princípios da universalidade, integralidade e equidade. Entretanto, esses princípios não impedem a adoção de instrumentos inovadores de financiamento, desde que estes respeitem a lógica do acesso igualitário. Dessa forma, esses acordos funcionam como uma espécie de integralidade racionalizada, pois permite a oferta de terapias de ponta em condições de segurança orçamentária. 

    Outro ponto que merece especial destaque é o artigo 144 da Lei 14.133/2021, a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Esse dispositivo autoriza expressamente a adoção de remuneração variável vinculada ao desempenho, o que legitima juridicamente a lógica dos RSAs, visto que essa previsão permite que editais e contratos públicos na área da saúde vinculem pagamento a metas de efetividade, ampliando a segurança jurídica desses arranjos.

    Adicionalmente, o Tema 500 do Supremo Tribunal Federal (RE 657.718) decidiu que, em regra, não cabe impor ao Estado o fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa, o que fortalece a ideia de que RSAs devem ser celebrados apenas para fármacos com registro, ainda que em contexto de incerteza sobre custo-efetividade.

    Assim, é evidente que os RSAs têm um forte amparo legal, não desrespeitando os dispositivos vigentes no ordenamento jurídico brasileiro. O desafio está em traduzi-los em contratos claros, com metas factíveis, indicadores clínicos validados e governança de dados segura, garantindo transparência e efetividade.

    O que são risk-sharing agreements (RSAs)

      A despeito da breve introdução sobre os RSAs acima, faz-se necessário pormenorizar a explicação. Os RSAs são contratos celebrados entre o Estado e a indústria farmacêutica que visam compartilhar os riscos inerentes à incorporação de novas tecnologias em saúde. 

      Eles se diferenciam claramente dos contratos padrão de fornecimento, em que o pagamento ocorre simplesmente pela entrega do produto. Nos RSAs, o pagamento é condicionado a metas de desempenho, como melhora em determinados indicadores de saúde, redução de hospitalizações ou aumento da sobrevida.

      Assim, o conceito central desse tipo de acordo é o de real-world evidence, em que os dados são obtidos em condições reais de tratamento, e não apenas em ensaios clínicos controlados. Isto porque ao condicionar o pagamento à coleta e análise desses dados, os RSAs permitem que políticas públicas se baseiem em evidências locais, mais representativas da população atendida pelo SUS.

      Do ponto de vista teórico, os RSAs se alinham ao princípio da economicidade e ao da eficiência, previstos no art. 37 da CF/88. Afinal, com esses instrumentos se está tratando de restringir direitos, mas de garantir que cada real gasto pelo Estado gere o máximo de benefício em saúde.

      Jurisprudência recente do STF e STJ

        A jurisprudência vem delimitando bem o direito à saúde e, consequentemente, a viabilidade de RSAs. Além do supramencionado Tema 500, há outros temas relevantes que se relacionam ao cenário desses acordos.

        No E. STF, o Tema 793, por exemplo, tratou da responsabilidade solidária dos entes federativos, reconhecendo que União, estados e municípios respondem conjuntamente pela prestação da saúde. Isso significa que acordos de risco celebrados em âmbito nacional podem ter reflexo direto em todos os entes, devendo haver clareza sobre a repartição de responsabilidades.

        Além disso, a edição da Súmula Vinculante 61, em 2024, estabeleceu critérios cumulativos para a concessão judicial de medicamentos não incorporados ao SUS, a saber:: (i) registro na Anvisa; (ii) inexistência de substituto terapêutico na lista do SUS; (iii) recomendação da Conitec ou mora irrazoável em analisar a incorporação; (iv) comprovação da imprescindibilidade clínica; e (v) incapacidade financeira do paciente.

        Corroborando com esse entendimento, o STJ, em sua jurisprudência sobre contratos administrativos, legitima a adoção de cláusulas de pagamento condicionado a desempenho, desde que previstas em lei, o que está em consonância com a Lei 14.133/2021, o que demonstra que  a jurisprudência atual não só é compatível com os RSAs como aponta para eles como caminho de conciliação entre direito à saúde, segurança orçamentária e eficiência administrativa.

        Essa análise, por fim, demonstra que os RSAs, além de serem compatíveis com o ordenamento jurídico nacional, desde a Constituição até a legislação infraconstitucional e a jurisprudência recente, representam uma resposta prática à judicialização da saúde e à crescente pressão orçamentária sobre o SUS. Ao atrelar o pagamento a resultados clínicos reais, os RSAs promovem eficiência, transparência e segurança no gasto público, sem renunciar ao núcleo essencial do direito fundamental à saúde. 

        O desafio agora é transformar experiências pontuais, como as do Spinraza e do Zolgensma, em política pública estruturada, com protocolos clínicos claros, monitoramento de dados compatível com a LGPD e governança institucional robusta. Assim, o Brasil poderá consolidar um modelo de acesso à inovação que seja sustentável, justo e verdadeiramente orientado ao valor em saúde.

        REFERÊNCIAS

        BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

        BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 set. 1990.

        BRASIL. Lei nº 12.401, de 28 de abril de 2011. Altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do SUS. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 29 abr. 2011.

        BRASIL. Decreto nº 7.646, de 21 de dezembro de 2011. Dispõe sobre a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde – CONITEC. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 dez. 2011.

        BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 ago. 2018.

        BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1 abr. 2021.

        RASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 657.718/MG. Rel. Min. Marco Aurélio. Tribunal Pleno. Julgado em 22 maio 2019. Tema 500 da Repercussão Geral.

        BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 855.178/SE. Rel. Min. Luiz Fux. Tribunal Pleno. Julgado em 23 maio 2019. Tema 793 da Repercussão Geral.

        BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante nº 61. Dispõe sobre os requisitos para fornecimento de medicamentos não incorporados ao SUS. Aprovada em 3 out. 2024.

        BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.657.156/RJ. Rel. Min. Benedito Gonçalves. 1ª Turma. Julgado em 26 set. 2017.

        BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 1.297, de 12 de junho de 2019. Institui projeto-piloto de Acordo de Compartilhamento de Risco (ACR) para o medicamento nusinersena (Spinraza®). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 jun. 2019.

        BRASIL. Ministério da Saúde; CONITEC. Acordo vai viabilizar oferta de terapia gênica Zolgensma® para pacientes com AME no SUS. Brasília, DF, 31 mar. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2025/marco/acordo-vai-viabilizar-oferta-do-zolgensma-para-pacientes-com-ame-no-sus.

        ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). Pharmaceutical Innovation and Access to Medicines. Paris: OECD Publishing, 2021.

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