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Arbitragem com Inteligência Artificial

A arbitragem consolidou-se nas últimas décadas como um dos mais relevantes métodos alternativos de resolução de conflitos. Sua flexibilidade, celeridade e confidencialidade a tornam especialmente atraente em disputas empresariais complexas, frequentemente envolvendo contratos internacionais, grandes valores e alta especialização técnica. 

Em paralelo, vivemos uma revolução tecnológica pautada pela ascensão da inteligência artificial (IA), capaz de transformar radicalmente setores inteiros da economia e da sociedade. 

O cruzamento desses dois fenômenos levanta indagações cruciais: pode a arbitragem ser conduzida por sistemas de IA? Em que medida a tecnologia pode contribuir para a eficiência do procedimento? Quais são os limites éticos e jurídicos de sua utilização?

O tema não é apenas especulativo. Experimentos concretos já estão em andamento, com softwares capazes de redigir laudos arbitrais preliminares, analisar precedentes, estimar probabilidades de êxito e até mesmo simular estratégias de negociação. Diante desse cenário, a discussão sobre a arbitragem com inteligência artificial ganha contornos de urgência, pois envolve a redefinição de categorias fundamentais do direito privado, da autonomia das partes e da própria ideia de jurisdição arbitral.

I – A arbitragem tradicional e seus fundamentos

Antes de analisar a incorporação da IA, é importante compreender os pilares da arbitragem. Diferentemente da jurisdição estatal, a arbitragem é fruto da vontade das partes, que celebram uma convenção para submeter suas controvérsias a árbitros escolhidos por elas. 

O procedimento é marcado pela autonomia privada, pela flexibilidade processual e pelo princípio da confidencialidade.

Outro aspecto central é a especialização dos árbitros. Muitas vezes, as partes escolhem profissionais com conhecimento técnico profundo em determinada área, como construção civil, energia, tecnologia e mercado financeiro. Isso se dá justamente para garantir maior aderência do julgamento às especificidades do conflito. 

Nesse ponto, a arbitragem já se distingue do Judiciário tradicional, muitas vezes mais lento e menos especializado.

A pergunta que se coloca na mesa: se a escolha dos árbitros se fundamenta em sua expertise, seria possível substituí-los por sistemas de IA treinados em vastos conjuntos de dados, capazes de identificar padrões de decisão e aplicar raciocínios complexos com rapidez?

II – Inteligência Artificial: Potencialidades na Arbitragem

A inteligência artificial já vem sendo aplicada em diferentes estágios da arbitragem, ainda que de modo parcial e auxiliar. 

Uma das formas que se utiliza consiste na seleção de árbitros. As plataformas de IA podem cruzar informações sobre experiências anteriores, decisões proferidas, publicações acadêmicas e redes de contato, ajudando as partes a escolher árbitros mais adequados ao perfil da disputa.

Além disso, em arbitragens que envolvem milhares de páginas, como as de infraestrutura, a IA pode acelerar a fase de discovery, identificando documentos relevantes, detectando inconsistências e agrupando provas por similaridade.

Em processos judiciais podemos utilizar a IA para a jurimetria. Na arbitragem, os algoritmos treinados em decisões arbitrais anteriores podem fornecer estimativas de probabilidade de êxito, auxiliando as partes em estratégias processuais e em cálculos de custo-benefício para eventual acordo.

Um dos usos mais comuns, até mesmo fora da arbitragem consiste na utilização da ferramenta de IA para gerar minutas de laudos, que podem ser revisados e ajustados pelos árbitros humanos, reduzindo tempo e custos do procedimento.

Ainda, há ferramentas inteligentes que permitem automatizar prazos, notificações, organização de audiências virtuais e até o controle de honorários, trazendo mais eficiência ao processo arbitral.

Essas aplicações, em grande medida, já estão em curso, indicando que a arbitragem caminha para se tornar cada vez mais tecnológica.

III – A possibilidade de árbitros artificiais

Um dos debates mais polêmicos diz respeito à utilização de árbitros artificiais, isto é, sistemas de IA assumindo o papel decisório. Essa hipótese gera entusiasmo e preocupação.

Essa ideia já permeava os debates acerca do modelo jurisdicional brasileiro, e agora avança para o mundo da arbitragem.

De um lado, há defensores da ideia de que algoritmos poderiam decidir de forma mais célere, objetiva e previsível do que árbitros humanos, eliminando vieses pessoais e reduzindo custos. Em disputas de menor complexidade ou de massa, essa possibilidade seria ainda mais atraente, permitindo decisões rápidas e padronizadas.

De outro lado, surgem inúmeras objeções. O princípio da autonomia da vontade, ainda que permita às partes escolherem seus árbitros, pode ser tensionado pela ideia de confiar a decisão final a um software. 

Mais grave ainda é a questão da motivação da decisão: a opacidade de algoritmos de aprendizado de máquina pode inviabilizar a compreensão dos fundamentos de um laudo arbitral, ferindo a exigência de transparência e contraditório.

Além disso, há questões práticas: quem seria responsável por eventuais falhas de um árbitro artificial? O programador? A instituição arbitral? As partes que consentiram com sua utilização? O regime de responsabilidade civil nesse cenário permanece nebuloso.

IV – Aspectos jurídicos e regulatórios

O ordenamento jurídico brasileiro, regido pela Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307/1996), não proíbe expressamente a utilização de IA em arbitragens. O texto legal afirma que qualquer pessoa capaz pode ser árbitro, o que, a princípio, excluiria máquinas. 

Contudo, a interpretação extensiva da autonomia privada poderia admitir que as partes confiem a decisão a sistemas artificiais, desde que não haja violação à ordem pública.

Internacionalmente, algumas experiências já despontam. Em 2018, a Estônia anunciou a criação de um projeto-piloto de juízes-robôs para pequenas causas. Ainda que voltado ao Judiciário estatal, o experimento evidencia o avanço tecnológico em matéria decisória. 

No campo arbitral, certas instituições já oferecem plataformas de resolução online de disputas (ODR), em que algoritmos auxiliam na mediação ou sugerem acordos.

O desafio regulatório, portanto, está em equilibrar inovação com garantias fundamentais. A arbitragem não pode ser reduzida a um ato mecânico de processamento de dados; é preciso preservar a legitimidade, a motivação e a justiça da decisão.

V – Ética e imparcialidade algorítmica

Outro ponto crucial é a questão da imparcialidade. Se a arbitragem depende da confiança das partes nos árbitros, como assegurar que algoritmos não estejam enviesados por dados de treinamento que reflitam preconceitos ou desigualdades históricas?

Pesquisas têm demonstrado que sistemas de IA podem reproduzir vieses de gênero, raça ou origem social, comprometendo sua neutralidade. 

No contexto arbitral, isso seria particularmente grave, pois minaria a credibilidade do laudo. Daí a importância de regras éticas claras, exigindo transparência nos dados utilizados, auditoria de algoritmos e possibilidade de contestação pelas partes.

VI – Caminhos futuros

Para que a arbitragem com inteligência artificial se consolide de forma legítima e eficaz, alguns caminhos parecem indispensáveis. Inicialmente é necessário regular a utilização dessas novas ferramentas. A criação de normas nacionais e internacionais que disciplinem o uso de IA em procedimentos arbitrais, estabelecendo limites, responsabilidades e padrões de transparência.

As câmaras arbitrais devem liderar a inovação, oferecendo plataformas seguras, auditáveis e acessíveis, além de preparar árbitros para o uso de novas tecnologias.

Um dos principais tópicos de deliberação deve se dar no campo da ética algorítmica, de modo que a exigência de auditoria independente, explicabilidade de decisões e mecanismos de correção de vieses será fundamental para preservar a legitimidade do sistema.

O processo de letramento de IA será substancial neste primeiro momento, de forma que os árbitros e os advogados precisarão dominar conhecimentos básicos de IA, análise de dados e tecnologia para desempenhar adequadamente suas funções no novo cenário.

Assim, a transição deve ser feita de forma progressiva, começando com funções auxiliares (gestão processual, análise documental) e evoluindo para maior protagonismo da IA, sempre com supervisão humana.

Conclusão

A arbitragem com inteligência artificial não é mais um futuro distante: é uma realidade em gestação. Embora ainda cercada de desafios jurídicos, éticos e práticos, a tecnologia já demonstra grande potencial de tornar os procedimentos mais eficientes, acessíveis e previsíveis.

No entanto, é fundamental reconhecer que a arbitragem não é apenas um mecanismo técnico de resolução de disputas, mas também um espaço de confiança, legitimidade e justiça. Esses valores não podem ser sacrificados em nome da eficiência algorítmica. A inteligência artificial deve ser compreendida como ferramenta de apoio, e não como substituta integral da racionalidade humana.

O direito privado, por meio da arbitragem, tem diante de si a oportunidade de liderar um processo inovador de incorporação tecnológica, capaz de redefinir paradigmas e projetar novas formas de resolução de conflitos. Cabe à comunidade jurídica, arbitral e tecnológica construir esse futuro de modo responsável, equilibrando inovação com garantias fundamentais. 

Somente assim a arbitragem com inteligência artificial poderá cumprir sua promessa: unir a tradição da autonomia privada com a revolução da inteligência de máquinas, preparando-se para os desafios de um mundo cada vez mais complexo e interconectado.

Leia mais: 5 tendências tecnológicas que todo servidor público precisa conhecer

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BECKER, Daniel; CAMPOS, Ludmilla. Inteligência Artificial e Arbitragem: Um Breve Estudo Sobre a Instrumentalização da Tecnologia em Procedimentos Arbitrais. Privacy and Data Protection Magazine, n. 008.

BERGMAN, Deborah. Responsabilidade civil pelo uso de inteligência artificial na mediação e na arbitragem. 2022. Dissertação de Mestrado. Universidade Autonoma de Lisboa (Portugal).

HOECHNER, Lara de Melo Schneider Bier et al. Revolucionando o Direito: a influência da Inteligência Artificial na mediação e contratos inteligentes no Brasil. Revista Avant, v. 8, n. 2, p. 186-198, 2024.

MARTINS, André Almeida. Arbitragem e tecnologia: uma visão panorâmica. In: International conference estate, succession and autonomy–new assets and new trends and adfas 5th international congress. UCP Editora, 2024. p. 263-279.

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