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Responsabilidade dos provedores à luz do STF: o que diz o marco civil da internet?

O Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) foi instituído para estabelecer princípios, direitos e deveres no uso da internet no Brasil, inclusive no que diz respeito à responsabilidade dos provedores. Seu artigo 19 condiciona a responsabilização civil desses agentes à existência de ordem judicial prévia, funcionando como uma salvaguarda para a liberdade de expressão.

Essa concepção legal, no entanto, tem sido objeto de intensos debates judiciais e acadêmicos, especialmente após a ADI 6387 e o RE 1.057.258, os quais redefiniram os contornos da atuação das plataformas digitais. Antes de explorarmos os impactos desses julgados, é essencial compreender os fundamentos e estruturas do Marco Civil que embasam o tema.

O que é o Marco Civil da Internet?

O Marco Civil da Internet é a legislação brasileira que consolida os direitos e garantias dos usuários no ambiente digital. Apelidado de “Constituição da Internet”, foi criado para promover um espaço seguro, democrático e respeitoso à privacidade dos usuários.

Seus principais objetivos incluem:

  • Garantir acesso contínuo à internet;
  • Proteger dados pessoais;
  • Assegurar tratamento isonômico ao conteúdo online;
  • Regular a atuação dos provedores de serviços.

Esses objetivos se desdobram em três princípios fundamentais, previstos no artigo 3º da lei:

  • Liberdade de expressão: garante o direito à manifestação de pensamento, vedando a censura prévia e assegurando a pluralidade de vozes no ambiente digital.
  • Privacidade e proteção de dados: exige o sigilo das comunicações e dos dados pessoais, exceto por determinação judicial.
  • Neutralidade da rede: impõe tratamento igualitário a todos os pacotes de dados, independentemente de conteúdo, origem ou destino.

Com esses pilares, o Marco Civil busca assegurar que a internet permaneça um espaço aberto, seguro e pautado em direitos fundamentais.

Provedores de conexão e de aplicações: qual a diferença?

Para regulamentar as responsabilidades no ambiente digital, o Marco Civil distingue dois tipos de provedores:

  1. Provedores de conexão: são aqueles que oferecem acesso à rede (como operadoras de banda larga e telefonia móvel). Conforme o artigo 18, não podem ser responsabilizados por conteúdos gerados por terceiros.
  2. Provedores de aplicações: englobam serviços como redes sociais, blogs, sites e plataformas de hospedagem. Esses, segundo o artigo 19, só poderão ser responsabilizados caso deixem de cumprir ordem judicial específica de remoção de conteúdo, dentro dos prazos e limites técnicos do serviço.

Essa distinção é fundamental, pois busca equilibrar a liberdade de expressão com a proteção de direitos de terceiros, sem transformar os provedores em censores ou julgadores de conteúdo.

Artigo 19 do Marco Civil da Internet: como funciona?

O artigo 19 define um modelo de responsabilidade subsidiária para os provedores de aplicações. Segundo ele, essas plataformas só podem ser responsabilizadas civilmente se:

  1. Houver ordem judicial específica identificando o conteúdo;
  2. Mesmo após notificação, o provedor não remover o material no prazo e nos limites técnicos possíveis.

Esse modelo impede que os provedores sejam punidos por conteúdos que desconnheçam, reforçando a importância da atuação judicial como garantidora dos direitos em conflito.

O que dizem os críticos e defensores do art. 19?

Esse dispositivo estabelece que não há culpa automática do provedor; exige-se decisão judicial prévia para que atue.

Entretanto, a estrutura do artigo 19 não é isenta de polêmicas. Os debates giram em torno de dois polos: (i) a proteção da liberdade de expressão; e (ii) a eficácia no combate a conteúdos ilícitos.

Argumentos a favor:

  • Preserva a liberdade de expressão: evita remoções arbitrárias por parte das plataformas.
  • Garante segurança jurídica: define critérios claros para atuação, com respaldo judicial.
  • Proporciona previsibilidade: os provedores sabem exatamente como agir, evitando inseguranças.

Argumentos contrários:

  • Risco de impunidade: conteúdos ofensivos podem permanecer ativos por longos períodos até que haja ordem judicial.
  • Lentidão judicial: fraudes, fake news e crimes digitais se propagam rapidamente, o que exige respostas céleres.
  • Inadequação ao ambiente digital: o modelo “notice and take down” (notificação e remoção imediata) seria, para muitos, mais eficaz no contexto online.

Diante desses conflitos, o artigo 19 passou a ser interpretado de forma mais flexível pelo Supremo Tribunal Federal, em especial no julgamento da ADI 6387, tema que abordaremos a seguir.

ADI 6387 e os limites constitucionais do artigo 19

A Ação Direta de Inconstitucionalidade 6387 foi ajuizada pelo PTB em 2020 contra a Medida Provisória 954/2020, que trata do compartilhamento de dados pessoais por empresas de telecomunicação com o IBGE. Ainda que a MP fosse o foco, o debate se ampliou para os efeitos do artigo 19 do MCI sobre os direitos fundamentais à privacidade e à dignidade.

Na ADI, alegou-se que o modelo atual do artigo 19 concede imunidade excessiva aos provedores, permitindo que conteúdos prejudiciais permaneçam no ar por longos períodos. Já a AGU defendeu o modelo atual como essencial para garantir a segurança jurídica. A PGR, por sua vez, propôs uma posição intermediária, reconhecendo a necessidade de revisão do dispositivo sem comprometer os direitos fundamentais.

Decisão do STF

O Supremo julgou a ação parcialmente procedente, impondo aos provedores um dever de cuidado qualificado. Ficou decidido que:

  • A ordem judicial continua sendo regra para remoções que demandem análise individualizada;
  • Para conteúdos manifesta e flagrantemente ilícitos, não é necessária nova ordem judicial, cabendo aos provedores removê-los de forma proativa.

Assim, o STF delimitou o alcance do art. 19, sem invalidá-lo, e determinou maior responsabilidade às plataformas nos casos mais evidentes de violação de direitos.

Tema 533 do STF – RE 1.057.258: quando a remoção pode ser imediata?

Outro julgamento importante foi o do Recurso Extraordinário 1.057.258, de repercussão geral (Tema 533), envolvendo o Google. Embora os fatos sejam anteriores à vigência do Marco Civil, o STF aplicou por analogia seus princípios, especialmente o artigo 19.

O cerne do debate era: é possível responsabilizar o provedor por conteúdo ofensivo antes de ordem judicial? A resposta do STF foi sim, em casos específicos.

A Corte entendeu que:

  • O artigo 19 permanece válido, mas pode ser relativizado quando o conteúdo for manifesta e gravemente ofensivo;
  • Para esses casos, o provedor deve agir mesmo sem ordem judicial, sobretudo se houver ampla difusão ou impulsionamento;
  • A regra geral continua sendo a exigência de decisão judicial, mas com exceções bem delineadas.

Essa tese vinculante amplia a responsabilidade das plataformas e antecipa o que virá com possíveis novas legislações.

O futuro da responsabilidade civil dos provedores no Brasil

As decisões da ADI 6387 e do RE 1.057.258 inauguram uma nova fase da responsabilidade digital. Ao reconhecer exceções ao artigo 19, o STF fortalece a atuação preventiva das plataformas, sem deixar de valorizar a tutela judicial.

Nesse contexto, o Projeto de Lei das Fake News (PL 2630/2020) avança com propostas mais rígidas, exigindo políticas de moderação ativas, transparência nos algoritmos e maior responsabilização das plataformas em relação à desinformação e aos discursos de ódio.

Essas mudanças indicam que:

  • Empresas precisarão investir mais em compliance digital e governança de conteúdo;
  • A judicialização tende a crescer, com aumento de pedidos de remoção e ações por danos;
  • Novos mecanismos administrativos poderão surgir, para aliviar a sobrecarga do Judiciário.

Considerações finais

A responsabilidade civil dos provedores no Brasil atravessa uma fase de transição, em que liberdade de expressão e combate à desinformação se enfrentam em terreno jurídico complexo. O artigo 19 do Marco Civil ainda é a base normativa, mas suas interpretações evoluem diante das exigências de uma sociedade hiperconectada.

Para os profissionais do Direito, especialmente aqueles que atuam com Direito Digital, Proteção de Dados e Responsabilidade Civil, acompanhar essas mudanças é indispensável. O momento exige atualização técnica, visão estratégica e compreensão dos impactos regulatórios em curso.

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Referências

BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Marco Civil da Internet. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm. Acesso em: 13 abr. 2025.

BORGES, Beatriz. Entenda o Artigo 19 do Marco Civil da Internet. Blog IDP. Brasília, 5 maio 2025. Disponível em: https://pos.idp.edu.br/idp-learning/blog/direito-digital/marco-civil-da-internet/.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Será o fim do Marco Civil da Internet como o conhecemos? Câmara dos Deputados – Rádio. Brasília, 17 jun. 2025. Disponível em: https://www.camara.leg.br/radio/programas/1170689-sera-o-fim-do-marco-civil-da-internet-como-o-conhecemos/.

ROCHA FERREIRA, A. Tratamento de dados pessoais em investigações criminais: o direito fundamental à autodeterminação informativa como limite constitucional. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 185, n. 185, 2024. Disponível em: https://publicacoes.ibccrim.org.br/index.php/RBCCRIM/article/view/1701.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). STF define parâmetros para responsabilização de plataformas por conteúdos de terceiros. STF Notícias, Brasília, 26 jun. 2025. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-define-parametros-para-responsabilizacao-de-plataformas-por-conteudos-de-terceiros/.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Marco Civil da Internet: relator considera inconstitucional exigência de ordem judicial para retirada de conteúdo. STF Notícias, Brasília, 4 dez. 2024. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/marco-civil-da-internet-relator-considera-inconstitucional-exigencia-de-ordem-judicial-para-retirada-de-conteudo/.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). STF suspende julgamento de regras do Marco Civil da Internet sobre responsabilidade de plataformas. STF Notícias, Brasília, 5 jun. 2025. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-suspende-julgamento-de-regras-do-marco-civil-da-internet-sobre-responsabilidade-de-plataformas/.

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