Lívia Hernandes Carvalho
Doutoranda em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP)
O CICLO VICIOSO DA VULNERABILIDADE CAUSADO PELA POBREZA
ENERGÉTICA: UMA RESENHA
Resenha Crítica do artigo “Pobreza energética do cidadão e sua vulnerabilidade diante de uma necessária transição energética”
“Preciso [de] dinheiro para pagar a luz. Aqui é assim. A gente não gasta luz, mas precisa pagar”; escreveu Carolina Maria de Jesus em sua visceral obra “Quarto de Despejo”, que apresenta um retrato fidedigno da pobreza e da vulnerabilidade na sociedade brasileira. E é justamente sobre a multidimensionalidade da pobreza e dos riscos que os mais vulneráveis enfrentam quando não possuem acesso a direitos básicos como o da energia elétrica que trata o artigo “Pobreza energética do cidadão e sua vulnerabilidade diante de uma necessária transição energética”, de autoria de Cláudio José Franzolin, Bruna dos Anjos Klingor e Maria Eduarda Ardinghi Brollo, apresentando uma correlação conceitual categórica entre pobreza multidimensional, pobreza energética, vulnerabilidade e processos de descarbonização.
Utilizando paradigmas acadêmicos desenvolvimentistas como parâmetros conceptivos para defender a urgência de superação da visão unidimensional da pobreza na contemporaneidade, os autores do artigo mencionado escrevem que, quando se fala em redução da pobreza, aborda-se necessariamente a plurivocidade dos fatores que configuram este estado de falta, é dizer: falar em pobreza é falar na falta de acesso à energia, na falta do alimento, na falta da saúde, na falta da união socioespacial, dentre todas as outras faltas (que não deveriam ser) possíveis.
A pobreza energética é, inclusive, agente agravante de todos os demais fatores que vitimizam a parcela mais vulnerável da sociedade. Entende-se, nesse sentido, que a pobreza energética é “a falta de acesso a fontes de energia moderna” (Poveda; Losekann; Silva, 2015, p. 2); conceito que por si só explica como tal falta gera maiores vulnerabilidades, uma vez que ter acesso à eletricidade significa “uma integração da educação, do abastecimento de água, do saneamento básico, dos serviços de saúde, da subsistência, da universalização da informação e da qualidade de vida” (Brollo; Franzolin; Klinger, 2024, p. 97).
O liame entre pobreza energética e vulnerabilidade é tecido, sem buracos, na caminhada da pesquisa até o ponto de partida para possíveis mudanças (qual seja, a transição energética). Explicam os autores que pensar em vulnerabilidade deve ir além da intenção de conceituá-la academicamente, posto que a diversidade de proteções jurídicas de direitos e de interesses coletivos preconizados nos diplomas legais brasileiros fortalecem “o papel hermenêutico da dignidade da pessoa humana” (Brollo; Franzolin; Klinger, 2024, p. 98).
Quando uma pesquisa se propõe a traçar uma linha investigativa sobre conceitos que podem se confundir, é importante que haja uma preocupação com o delimitar das concepções dentro do oceano de abordagens acadêmicas que existem. E Brollo, Franzolin e Klingor (2024) encontram o ponto de intersecção ideal entre as temáticas que levantam, desenhando a conexão entre pobreza e falta de acesso à energia que, como num ciclo vicioso, gera ainda mais vulnerabilidade energética.
No girar da roda da desigualdade e seus efeitos, o artigo apresenta a discussão acerca da transição energética, tendo o cuidado necessário de propô-la tanto pelo ponto de vista dos benefícios de métodos alternativos de acesso à energia, quanto pelos possíveis empecilhos que tais alternativas podem causar na luta contra a vulnerabilidade energética. A preocupação dos autores sobre as possibilidades e limites das alternativas formaliza um diálogo direto com a busca por uma justiça ambiental que vise garantir que a transformação da energia descarbonizadora responda tanto aos imperativos climáticos, quanto à construção de uma sociedade justa e igualitária (Miranda et al., 2024, p. 12).
Toda a pesquisa apresentada é, portanto, um texto introdutório que não apenas resume com rigor acadêmico a superabundância conceitual das temáticas abordadas. Faz, também, a ligação lógica essencial para que seja facilmente compreensível a correlação inerente entre a falta de acesso a direitos básicos, como energia, e a acentuação de vulnerabilidades sociais incompatíveis com o arcabouço jurídico nacional — uma incompatibilidade tão grotesca como, tal qual escrevera Carolina Maria de Jesus, a inexistência de uma energia (de um direito!) que, ainda assim, segue sendo cobrada dos mais vulneráveis.
REFERÊNCIAS
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2015.
MIRANDA, Flávia Giordana Diniz. Desigualdades na transição energética: uma análisecrítica através da justiça ambiental. In: REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 34., 2024, [Belo Horizonte]. Anais… [S.l.: s.n.], 2024.
POVEDA, Yormy Eliana Melo; LOSEKANN, Luciano Dias; SILVA, Niágara Rodrigues da Silva. Medindo a pobreza energética no Brasil: uma proposta fundamentada no Índice de Pobreza Energética Multidimensional (MEPI). In: 49° ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA. Associação Nacional dos Centros de Pós-graduação em Economia, [S.d.].
SOBRE A AUTORA
Lívia Carvalho possui graduação em Serviço Social pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Mestrado e Doutorado em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Franca) e, Pós-doutorado pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Presidente Prudente). Atualmente é docente do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Especialista em Direito Público e em Gestão de Políticas Sociais. Doutoranda em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Experiência na área de Serviço Social, Políticas Públicas e Direito.
MINICURSO DIÁLOGOS EM DIREITO PÚBLICO
Essa resenha faz parte do Minicurso Diálogos em Direito Público, uma iniciativa da Revista Direito Público (ISSN: 2236-1766), que busca promover a divulgação científica e o debate sobre artigos científicos publicados na revista. Criado em 2023, o minicurso tem como objetivo fomentar a interlocução entre pesquisadores e a comunidade acadêmica por meio da apresentação de dossiês temáticos. Durante o evento, os autores dos artigos discutem suas pesquisas, permitindo a troca de ideias e a construção de novas perspectivas. Além disso, os participantes têm a oportunidade de produzir resenhas dos artigos, contribuindo para a reflexão e a expansão do conhecimento na área.